Exercícios de redação de Fritz Kocher - O Incêndio, de Robert Walser

Olá leitores, a partir de hoje e a cada semana, a Revista RapaDura convida você a  conhecer os (micro)contos de Exercícios de redação de Fritz Kocher, de Robert Walser, autor suiço, predileto de Kafka. Boa leitura!

INTRODUÇÃO

O menino que escreveu essas redações morreu pouco depois de ter deixado a escola. Tive algum trabalho em persuadir a mãe dele, uma dama adorável, amável, a ceder os textos para publicação. Ela estava, compreende-se, muito afeiçoada a essas folhas, que deviam ter sido uma doce lembrança do filho. Apenas a afirmação da minha parte, que iria mandar imprimir as redações totalmente inalteradas, exatamente assim como o seu Fritz as tivera escrito, finalmente, fê-las chegarem as minhas mãos. Para muitos, em muitos trechos, elas queiram  parecer precoces e, em muitos outros trechos, pueris demais. Contudo peço tomarem em consideração que minha mão não modificou nada nisso. Um menino é capaz de falar muito sabiamente e muito tolamente quase ao mesmo tempo: assim são as redações. Despedi-me da mãe do menino com o mais gentil agradecimento possível que pude arranjar. Ela me contou diversas passagens na vida do garoto, as quais condizem simpaticamente com os aspectos de seus trabalhos escolares aqui presentes. Teve de morrer prematuramente, o divertido e sério risão que fora. Seus olhos que deveras foram grandes e radiantes, não chegaram a ver nada do mundo imenso pelo que tanto ansiava. Em vez disso foi lhe permitido divisar no seu mundo pequeno com clareza o que o leitor, por certo,  verificará ao ler os exercícios de redação. Adeus, meu baixinho! Adeus, leitor!


*** 



O INCÊNDIO


Sobre o prado noite-escura caminha um viandante solitário. As estrelas reluzindo acima dele são os únicos companheiros. Caminha meditando; subitamente, vem a reparar, acima de sua cabeça, um rubor escuro no céu. Faz alto, pensa e retorna à cidade pelo mesmo caminho no que acabou de chegar: ele sabe - houve um incêndio. Aperta seus passos, mas ainda está distante demais da cidade para que pudesse chegar lá num piscar de olho. Deixemo-lo firmar o passo e observemos como os moradores da cidade se comportam diante do fogo que irrompeu horrivelmente no meio deles. Um homem correu pelas ruelas quietas acordando os dorminhocos com o incessante tocar de corneta. Todo mundo reconhece o som singularmente medonho da corneta de fogo. Tudo que consegue levantar-se de um pulo, levanta-se de um pulo, veste-se, esfrega os olhos, reflete, põe-se em pé e sai correndo pelas ruas que, entrementes, tornaram-se movimentadas, em direção ao local do incêndio. Este está situado na rua principal sendo um dos prédios mais importantes da municipalidade. O fogo alastra-se violentamente. É, como se ele tivesse cem braços escorregadiços, saltitantes. O corpo de bombeiros ainda não esta a postos. Os bombeiros são lentos em qualquer lugar, principalmente porém, na nossa cidade. É agora, que eles haviam de estar aqui, pois; a situação torna-se inquietante. O fogo que, como todos os elementos enfurecidos, ignora reflexão, enlouquece de vez. Por que as refreantes mãos humanas ainda não estão nas proximidades? Será que as pessoas, justamente, numa noite de pavor como essa, têm que ficar indolentes demais? Há muita gente na praça. Realmente eu e o professor e todos que fazem parte da nossa turma estão ali. Todo mundo embasbacado espantado, boquiaberto.  - Eis, finalmente, os bombeiros vêm chegando, aparentemente, sonolentos e começam o desempenho de suas funções. Estas consistem, por enquanto, num bastante inútil correr para cá e para lá e gritar para cá e para lá. Para que toda essa gritaria? Uma ordem e um tácito obedecer, isto pois seria bem melhor. O fogo virou um fogo arrasador. Por que lhe deram o tempo a tornar-se um fogo arrasador? Devora, rebate, silva, enfurece-se, como um beberrão em brasa, pintado de roxo, devasta destroçando tudo o que cair em suas garras. O prédio, em todo o caso, está se arruinando. Todas as bonitas e preciosas mercadorias, empilhadas lá dentro, estão queimando: Não importa, desde que não haja pessoas perecendo. Mas quase parece que o pior está a realizar-se. Uma voz de menina grita de dentro do pandemônio de fumaça e chamas. Coitada da menina! A mãe, ali na rua, desmaia. Um caixeiro-viajante a ampara. Oh, pudera que eu fosse forte e alto! Com que prazer iria desafiar as chamas, saltar lá para dentro ao encontro da mocinha, como um herói salvador! Será que não há nenhum herói por aí? Agora era a oportunidade de se mostrar como um homem bravo, corajoso. Mas o que será que é isso? Um jovem, esguio, pobremente vestido, acaba de galgar os degraus da imensa escada subindo cada vez mais alto para dentro da fumaça, das brasas; por um instante ele se torna terrivelmente visível; desaparece novamente e volta em seguida - que quadro! a moça num braço e com outro segurando-se cuidadosamente à escada, desce e devolve à mãe que,  entrementes, se recuperou um pouco, a filha que agora quase vem a ser sufocada pelos abraços. Ó, pudera que tivesse sido eu aquele bravo, corajoso rapaz. que momento! Ó, ser um homem assim! Tornar-se um homem assim! O prédio está reduzindo-se a cinzas. Na rua, mãe e filha se mantêm abraçadas, e aquele que salvara a segunda para a primeira, desapareceu sem deixar rasto.


Peter Welper é alemão, residente no Rio de Janeiro. Tradutor de longa data e entre seus trabalhos, está Perturbação, de Thomas Bernhar.

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