A viga de ferro


Passava os dias ali, agachada, postada ao chão. Olhava fixamente para a viga de ferro espreitada na divisa do muro. Entre a mulher e o metal, havia João. Pés descalços, peito aberto, mão pesada. A areia, apertada, escorria pelas mãos... Aquele homem negro lhe jogava de encontro ao fogão e lhe violentava. Não havia gritos ou soluços. As Crianças dormiam, o vestido ajeitava e a vida seguia.

E os dias passavam, ali agachada, postada ao chão. Olhava fixamente para a viga de ferro espreitada na divisa do muro. Entre elas, havia João. Pés descalços, peito aberto, mão pesada. A areia, apertada, escorria pelas mãos, enquanto aquele homem negro lhe jogava de encontro ao fogão e lhe violentava. Não havia gritos ou soluços. Crianças dormiam, o vestido ajeitava e a vida seguia.

Manuela, ou simplesmente a Malú, queria trabalhar. Ele, alguém que cuidasse da roupa, da comida e da casa. A moça venceu e batalhou por algum tempo numa tecelagem. O destino lhe deu Bebel. E depois Matheus, Victor, Melissa. Quando a quinta criança nasceu, o lar já não existia. Malú já não existia. Apesar do descaso, Juliana vingou, amparada pelo córrego intermitente, que ainda sobrevivia, no peito de sua mãe.

O tempo foi passando e João substituía as chaves de boca e o macacão surrado de graxa pelo taco de sinuca. Da cerveja para a cachaça e dessa para o inferno. Os dias passavam, a noite chegava e ele seguia conhecendo um barraco novo a cada dia. No meio do mês, quando um tostão já não lhe restava, seu dia era só bebida e o corpo de Malú, jovem e macio,  para ele bater e se encostar.

Antes de sua mulher, seu chefe se encheu. Renato recebeu apenas um cheque nominal e lhe pediram as chaves da garagem de volta. No boteco, levou uma surra e beijou o asfalto. Queriam a sua morte, mas seu credor gostou da ideia e aceitou Malú. Arrastado por toda a viela, foi jogado à porta de casa e chamou por sua mulher. Nua, de bruços no sofá, Malú não pôde compreender aquilo e enquanto o algoz se vestia, ela decidiu que nada mais existia.

Ao fim do terceiro ano, disseram que a moça enlouqueceu. João sonhou que estava na “hidro” com uma de suas vagabundas. Só teve tempo de arregalar os olhos, antes que seu cérebro derretesse. Ele gritou. Gritou bastante. Encharcado em água e sangue ferventes. Chegou sem vida ao hospital. E Malú apenas sorriu.

Tiraram-lhe os filhos. E ela sorriu. Passaram lhe as algemas, depois as correntes. Ela sorriu. No tribunal, também sorriu. No confessionário, diante do padre, do juiz e das pobres almas. Só quando voltou a ver os filhos, chorou. Mas abraçados a eles, novamente sorriu. Deu um beijo em cada e se despediu: “Vocês estão livres”.


Aquelas foram suas últimas palavras, seu último choro, seu último sorriso. Malú morreu. Abraçada a um velho urso de pelúcia, ela morreu. Não contava os dias, nem olhava as horas. Comia, bebia, dormia, acordava e apenas a ferrugem daquela viga de ferro na fresta do muro lhe acompanhava.

Os dias de chuva eram bem piores. Presos na cela ou amontoados no pátio, todos assistiam aquele farrapo humano, descendo até o chão, respirando a terra, procurando o horizonte ou o mar, sem desprender o olhar da viga de ferro. Resistiu a uma, duas, três doenças com alguma gravidade, disseram. Contudo seu corpo, que resistira a tanta coisa, não concordava com a ideia de morte e a sorte lhe trouxe Felipe. A compaixão transformou-se em amor e Manuela respirou.


O jovem médico conseguiu a remoção da moça para uma clínica particular: terapia, medicamentos e respeito. A moça já não enxergava mais a viga, embora, às vezes, ainda a procurasse. Felipe encontrou os filhos. Um a um. Reuniu a todos em uma grande casa na cidade de Pendotiba, aonde meses depois puderam receber de volta a mãe.


Custou cerca de 5 anos para que Manuela pudesse entrar definitivamente na vida de Felipe. Foram necessários recursos, atenuantes e pareceres médicos até que a condicional lhe fosse ofertada. Pela primeira vez, a moça teve o que sempre sonhou quando se apaixonou por João.


O médico mostrou-se reticente por mais um ano e ao final do verão de 1987, resolveram viajar. Passaram 20 dias longe de tudo e de todos. Felipe voltou convencido de que a mulher estava totalmente recuperada. Em uma noite, entrou no chuveiro, tomou um banho. Colocou champagne no gelo e perfumes no pescoço de sua mulher. Felipe era delicado em cada toque, enquanto Malú gemia com o olhar perdido. No canto do teto existia a viga de ferro, enquanto a chaleira chiava à beira do fogão. 




Henrique Biscardi é jornalista e mestre em Ciências Sociais. Bloga em "Contos e Crônicas" e "Pena Nervosa", além de outros blogs e sites. 

5 comentários :

  1. Henrique, como comentei via Facebook, gostei do conto, tem um ritmo bom de acompanhar. Legal ler vc. Homero Gomes

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  2. Tanta coisa cabe na loucura, né? Esse texto explorou bem as possibilidades. Ótimo conto, Henrique!
    A RapaDura está uma delícia.

    Bruna Mitrano

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  3. É muito bacana ver o quanto a sua escrita tem amadurecido. Gostei.

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  4. Nós, leitores, também entramos em estado de loucura. Quem é a personagem: Manuela ou Malu vive com Joâo, com Renato ou com Felipe? Ou com cada um de uma vez? Ou não importa afinal com quem ela vive, pois são todos a mesma coisa? Daí a indiferença da protagonista? É dramático, doloroso, louco? Talvez. Eu vejo muita consciência tomada por dor infinita. Gostei muito!

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