Sobre musas e vísceras




Carlos Drummond de Andrade uma vez escreveu uma crônica na qual lembrava de Manuel Bandeira, que dizia ser preciso inspiração até para atravessar a rua. Não sei se os sinais de trânsito ajudaram, mas é raro um artista falar de inspiração na atualidade. No máximo, de um insight.

Lá atrás um poeta podia orar para Melpômene ou Erato, mas fica difícil imaginar algo assim aqui e agora. A idéia de inspiração parece ter se firmado em algum momento do romantismo. Inspiração livre do modelo de simetria, equilíbrio e clareza que rege o clássico. É essa vaga crença no gênio, em uma força criadora que transcende o meramente humano e aponta para o alto e além do mundo sublunar, que parece persistir.

A inspiração perdoa-nos de nossa natureza demasiadamente humana e, em um lampejo, tira-nos das sombras da caverna e nos oferece um pouco da luz divina. Pois essa vida feita de maldade e de ilusão nada mais é que a ausência de brilho celestial. Nossos guias? Poetas, crianças, selvagens. Não é à toa que o cinema adora essa conversa. Com uma condensação de idéias e uma densidade narrativa dessas, o folhetim usa e abusa do tema. E a inspiração continua aí, segurando-se nas beiradas deste tempo de hibridismo, transversalidade e quetais.

De volta à Rousseau, foi entre os bons selvagens que reencontramos a centelha divina. Mas, na falta de grandes navegações na atualidade – os robôs de Marte não encontraram nenhuma coisinha tão bonitinha do pai –, ficamos então com as crianças, ainda sem mácula da civilização. Ao menos, até ser inventada outra faixa de consumo, abaixo dos teens e tweens.
Resta o poeta, modelo do artista genial, com versos feitos no “capricho do momento”. E que se revolta contra o saber estabelecido, as regras de harmonia, a reflexão crítica do fazer artístico. E daí toda uma literatura de exaltação aos dândis, loucos, ascetas e criminosos, que vivem às margens do mundo controlado da sociedade.

Ainda existem poetas assim? Pode ser, mas seria constrangedor encontrar um ótimo escritor, como Carlito Azevedo, por exemplo, na Praia da Bica a escrever acrósticos com os olhinhos rútilos revirados para lua. A turma reza pela cartilha de João Cabral.

Um exemplo dessa derrocada da inspiração está na fotografia. Mais e mais os fotógrafos abandonam o instante decisivo de Bresson e cia., na verdade, uma herança direta desse flash do divino que ilumina o artista e pressiona o disparador. Hoje a regra é o processo – mesmo que temperado pelo aleatório. O flagrante, motordrive do fotojornalismo em décadas de grandes imagens, deu lugar ao projeto, à elaboração conceitual. Basta olhar os belos ensaios de Gustavo Pellizon, na Revista do Globo, feitos sem a preocupação com o clique que sintetiza toda a informação da reportagem. Até porque muitas vezes não há fato algum a se registrar. Para se chegar à imagem, portanto, é preciso muito trabalho físico e intelectual.

Para resumir essa sensibilidade e concepção do trabalho criativo, vale lembrar uma piada antiga e contada pelo que vos escreve sem a menor inspiração. Dizem que Vinicius de Morais carregou João Cabral para uma reuniãozinha com cantinho, violão etc. Tudo muito bom, com gente bonita, inteligente, uisquinho, violão, bim-bom. E então o Vinicius pergunta: – E aí, João? Tá gostando? E o poeta mais seco do mundo responde: – Tô gostando, tô gostando. Mas essas músicas de vocês sempre falam de coração, coração, compreende? Vocês não sabem falar de outra víscera não?
 
O tempo é de expiração.



Mauro Trindade é professor e jornalista. Trabalhou no Jornal do Brasil, O Globo, Tribuna da Imprensa e Revista Bravo, entre outros periódicos. É professor de História da Arte e curador das exposições Ponto em Movimento, aberta a partir de 6 de junho na Galeria Portinari, da UERJ, e Wolney Teixeira: O Sal da Terra, com vernissage dia 27 de junho, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.

3 comentários :

  1. Troco a palavra -inspiração- por paixão.
    O que falta aos poetas de hoje por exemplo, além de paixão é leitura, conheço muito que não sabe nada sobre autores, gerações literárias...

    ResponderExcluir
  2. Morreu a inspiração (divina)? ficou o insight(humano,não transcendente), mas, ainda assim, fruto do inconsciente). E do inconsciente surge o surpreendente, o inusitado, não "flash do divino", mas "flash do humano", talvez "demasiadamente humano", para alguns que negam a existencia de qualquer coisa além do físico e intelectual.

    ResponderExcluir
  3. Pois é, seu texto reverberou: um texto do Pondé sobre a alma romântica, que se desdobrou em memória história. Também sinto falta ´de outra víscera´ e que ´o tempo é de expiação´!
    Bacana!
    abraço
    Gisèle Miranda

    ResponderExcluir

 

.newsletter

Cadastre-se e receba nossas atualizações diretamente em seu e-mail:

.arquivos

.facebook

.sobre

Criada com o desejo de debater temas únicos com olhares de várias perspectivas, artísticas – ou não (como diria Caê); a Revista Rapadura nasce para fomentar, no espaço livre e caótico da internet, o diálogo, a reflexão e o prazer através de matérias aglutinadas por sua natureza colaborativa.

Uma revista feita por pessoas de diferentes ideias, idades, idiossincrasias, lugares, opiniões, paladares.
Lembre-se: é doce, mas não é mole não.

.
.