[si.mu.la.cro]




Sentou-se nu, assim como seu personagem literário preferido fazia, para escrever; tinha apenas as meias pretas a aquecer-lhe uma coisa ou outra do corpo franzino. Enfim realizaria um sonho antigo: escreveria seu livro de contos. Há tempos vinha procurando um modo de poder fazê-lo, mas a namorada, os poucos familiares com quem se importava (e vice-versa) e o trabalho lhe tolhiam as escolhas. Rompeu com a namorada, os tios morreram num acidente esdrúxulo que não vale a pena ser contado. O emprego? Simplesmente deixou de ir. Agora eram apenas os dois, ele e sua Remington Royale de segunda mão.
Trazia as histórias de cor, na maior acepção da palavra: trazia de dentro do coração, todas de início-meio-e-fim, todas personagens e cenários, os motes, as nuances, tudo e todos. Escreveria seus trinta e um contos naquela noite só dele, feita de encomenda por Deus àquela especialíssima ocasião, não faria mais nada que não fosse aquilo até o fim se necessário. Tirou o telefone do gancho, informou ao zelador que não queria receber ninguém, caso surgissem sei lá quem, sei lá de onde; cobriu os dois relógios do seu apartamento, guardou o de pulso no fundo da gaveta de cuecas; jogou o celular pré-pago para longe, desmontou a cama e jogou fora o colchão. Diminuiu o máximo de luzes; na cozinha, a chaleira estrategicamente preparada para o café; os maços de cigarro ao lado do cinzeiro afanado de um motel qualquer; uma garrafa de água mineral (sem gás). Nem mesmo seus cd´s favoritos foram poupados daquela imersão, a questão que impôs a si mesmo, colocou-os junto do som, na pequena dispensa do apartamento.
Ia ter início o espetáculo.
A brainstorm que esperava não veio. O destino parecia escarnecer dele,  diante da máquina sentiu-se mudo por completo, nada daquilo que tinha dentro de si parecia fazer sentido grafado em preto na folha branca. Agitado, levantou e andou pela quitinete, que parecia ficar menor do que já era. Suando, fumou um maço e mais dois terços de outro, buscou o relógio no fundo da gaveta a fim de saber quanto tempo tinha perdido até aquele momento, teve a nítida sensação de ouvir “Impossible Mission”, o ringtone do seu celular, em vários lugares da casa. Precisava se acalmar. Pelado que estava, “tocou” umazinha para relaxar, não adiantou, lembrou-se do café (a água mineral há muito tinha acabado). Ligou o gás quando sentiu um arrepio, que se transformou em ideia, que se traduziria em palavras.
Ia ter início o espetáculo.
Datilografando a dois dedos, as ideias eram transformadas rápidas e facilmente em enredo e trama, simples nomes ganhavam vida e personalidade, escrevia como sempre quisera escrever: abandonado. Completamente entregue àquilo, um simulacro bem acabado de tudo que quisera ser, deixando de vez sua casca grosseira para trás...
(poderíamos terminar aqui e todos sairíamos satisfeitos, e por que não o fazemos? Porque, como disse alguém certa vez, ‘um desejo não está satisfeito, enquanto não for destruído’ e vocês querem um fim para nossa história).
...continuou a escrever e escrever, sentia-se cada vez mais tomado por um quê onírico, não queria parar, sentia algo no ar além de si mesmo, pouco a pouco embebido no torpor que o acometia, tépido, chegando ao fim. Os olhos lacrimejavam, vacilavam a cada frase, mas estava chegando... “Fim”, escreveu no trigésimo primeiro conto – O Simulacro –, sorriu para si e quis fechar os olhos doloridos.

***

Tempos depois, o zelador, inquirido pelos moradores do porquê daquele cheiro acre que tomava o prédio, bateu na porta do 11092. Nosso escritor foi encontrado morto. O bico do gás ficara aberto, assim como seus olhos. O zelador encontrou os trinta e um contos, leu-os. Fascinado roubou-os e assinou com sendo seus, fez fortuna, batizou-o de "Simulacros" e parece que um terno Armani de Hollywood comprou os direitos para uma futura adaptação nos cinemas.


Mauro Siqueira é flamenguista e escorpiano; fomentador de redes sociais e não sai do Twitter, é ficcionista, leitor foraz, autor do livro de contos De vermes e outros animais rastejantes. Participa de vários projetos online e tem contos aqui e ali pela rede. Colabora com o blog da Livraria Blooks e é editor da Revista RapaDura.

3 comentários :

  1. HARDPLEASE!

    Saudades de ler um texto teu, Maurão. Finalmente o tempo me volta. Hahaha.

    Aquela acidez, absurdo e violência que eu acho tão foda. Um certo carinho ou identificação pelo personagem que é totalmente transformado em deboche e pq não uma pitada bukowskiana.

    Grande!

    Abraço, meu véi!

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  2. Obrigado, André! O tempo passou, mas a sua leitura ainda é precisa. O conto está no meu livro e muito se fala/diz sobre o 'martírio do artista' e eu quis extremar essa brincadeira e, de quebra, aludir de alguma forma a Sra. Inspiração.

    abraço

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