O plástico

termo "mito", em sua etimologia, significa “história”, “fábula”; nos estudos da área, o mito é uma narrativa sagrada que explica como o mundo e a humanidade originaram-se e a forma que são atualmente. Mais do que isso, "são sistemas de símbolos que nos são transmitidos pela sociedade em que nos inserimos e que são fundadores – ou, ao menos, sustentadores – de tradições e comportamentos. São sistemas que distorcem a percepção da realidade para justificar certos comportamentos." Quem nos diz isso é Roland Barthes no já clássico livro Mitologias, do qual a RapaDura reproduz dois textos: "O plástico", que você lê agora, e "Saponáceos e detergentes", programado para amanhã. 
Boa leitura"

— Equipe RapaDura



O Plástico

Apesar dos seus nomes de pastores gregos (Polistirene, Fenoplaste, Polivinile e Polietilene), o plástico, cujo os produtos forma recentemente concentrados numa exposição, é essencialmente uma substância alquímica. À entrada do estande o público espera demoradamente, em fila, a fim de ver se realizar a operação mágica por excelência: a conversão da matéria; uma máquina ideal, tubulada e oblonga (forma apropriada para manifestar o segredo de um itinerário) transforma sem esforço um monte de cristais esverdeados em potes brilhantes e canelados. De um lado, a matéria bruta, telúrica, e, do outro o objeto perfeito, humano; e, entre esses dois extremos, nada; apenas um trajeto, vigiado por um empregado de boné, meio deus, meio autômato.

Assim, mais do que uma substância, o plástico é a própria ideia da sua transformação infinita, é a ubiquidade tornada visível, como o seu nome vulgar o indica; e, por isso mesmo, é considerado uma matéria milagrosa: o milagre é sempre uma conversão brusca da natureza. O plástico fica inteiramente impregnado desse espanto: é menos um objeto do que o vestígio de um movimento.

E, como esse movimento é, nesse caso, quase infinito, transformando os cristais de origem numa variedade de objetos cada vez mais surpreendentes, o plástico é, em suma, um espetáculo a se decifrar: o próprio espetáculo dos seus resultados. Diante de cada forma acabada(mala, escova, carroceria de automóvel, brinquedo, tecido, cano, bacia ou papel), o espírito considera sistematicamente a matéria-prima como enigma. Este “proteísmo” do plástico é total: pode formar tão facilmente um balde como uma joia. Daí o espanto perpétuo, o sonho do homem perante as proliferações da matéria e perante as ligações que surpreende entre o singular da origem e o plural dos efeitos. Trata-se, aliás, de um espanto feliz, visto que o homem mede o seu poder pela amplitude das transformações e que o próprio itinerário do plástico lhe dá a euforia de um prestigioso movimento ao longo da Natureza.

Mas o preço desse êxito está no fato de que o plástico, sublimado como movimento, quase não existe como substância. A sua constituição é negativa: não sendo duro nem profundo, tem de se contentar com uma qualidade substancial neutra, apesar das suas vantagens utilitárias: a resistência, estado que supõe a simples suspensão de um abandono. Na ordem poética das grandes substâncias, é um material desfavorecido, perdido entre a efusão das borrachas e a dureza planado metal: não realiza nenhum dos verdadeiros produtos da ordem mineral, espumas, fibras, camadas. É uma substância alterada: seja qual for o estado em que se transforme, o plástico conserva uma aparência flocosa, algo turvo, cremoso e entorpecido, uma impotência em atingir alguma vez o liso triunfante da Natureza. Mas aquilo que mais o trai é o som que produz, simultaneamente oco e plano. Esse detalhe derrota-o, assim como as suas cores, pois parece fixar apenas as mais químicas: do amarelo, do vermelho e do verde só conserva o estado agressivo, utilizando —as somente como um nome, capaz de ostentar apenas conceitos de cores.

A moda do plástico acusa uma evolução no mito do símile, sendo um costume historicamente burguês (as primeiras imitações, no vestuário, datam do início do capitalismo); mas até hoje o símile sempre denotou a pretensão, fazia parte de um mundo de aparência, não do uso prático, pretendia reproduzir pelo menor preço as substâncias mais raras, o diamante, a seda, as plumas, as peles, a prata, tudo o que de brilhante houvesse no mundo. O plástico a um preço reduzido é uma substância doméstica. É a primeira matéria mágica a adquirir o prosaísmo; mais precisamente, porque esse prosaísmo é para ele uma razão triunfante de existência: pela primeira vez o artifício visa o consumo, e não ao raro. E, paralelamente, modifica-se a função ancestral da Natureza: ela deixou de ser a Ideia, a pura Substância que recupera ou imita; uma matéria artificial, mais fecunda do que todas as jazidas do mundo, vai substituí-la e comandar a própria invenção das formas. Um objeto luxuoso está sempre ligado à terra, recorda sempre de uma maneira preciosa a sua origem mineral ou animal, o tema atual de que é apenas uma atualidade. O plástico é totalmente absorvido pela sua utilização: em última instância, incentar-se-ão objetos pelo simples prazer de serem utilizados. Aboliu-se a hierarquia das substâncias, pois apenas uma substituiu todas as outras: o mundo inteiro pode ser plastificado, e até mesmo a própria vida, visto que, ao que parece, já foi iniciada a fabricação de aortas de plástico.





Roland Barthesfoi um escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês. Formado em Letras Clássicas em 1939 e Gramática e Filosofia em 1943 na Universidade de Paris, fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo linguista Ferdinand de Saussure.

*Esse texto foi reproduzido com a autorização da editora Difel, detentora dos direitos da obra citada. Não podendo nós, Revista RapaDura, fazer outro uso, além desse.

 

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