Leia um trecho do novo livro de Ana Paula Maia! [especial]




©Marcelo Correa | Site da autora


Este mês a escritora Ana Paula Maia lança seu quarto romance: Carvão Animal. É um romance forte ao estilo todo próprio da autora - talvez o mais emblemático da trilogia apelidada de "A saga dos brutos". Quem já leu entende nas entrelinhas o que queremos dizer, quem ainda não conhece a prosa de APM tem de estar preparado para suas palavras... fortes, ásperas, brutais e de humor inesperados, acompanhadas de descrições vivas da vida de uma parcela de homens quase invisíveis.
E assim nos diz a sinopse de Carvão Animal:
O romance conta a história do bombeiro Ernesto Wesley e seu irmão Ronivon, funcionário do crematório da fictícia e cinzenta cidade de Abalurdes. Assombrados por uma tragédia do passado que ao longo da narrativa os persegue, esses dois irmãos que lidam com o fogo, um para combater e o outro para apagar os vestígios da existência física de alguém que morreu, seguem com suas vidas simples e driblam as intempéries de uma cidade que está sempre em chamas.  

Ana Paula Maia já vem divulgando seu novo livro, criou um site para isto, com promoção de sorteio para uma exemplar autografado! O lançamento será nos dias 14 (Rio de Janeiro) e 19 de abril (São Paulo), mais detalhes AQUI. A autora fez a gentileza de permitir que um trechinho de Carvão Animal fosse transcrito aqui.

Estontei-se:


Capítulo 4


O planeta é mensurável e transitório. Assim como o espaço para armazenar lixo está se findando, para inumar os cadáveres também. Daqui a algumas décadas ou uma centena de anos haverá mais corpos embaixo da terra do que sobre ela. Estaremos pisando em antepassados, vizinhos, parentes e inimigos, como pisamos em grama seca; sem nos importarmos. O solo e a água estarão contaminados por necrochorume, um líquido que sai dos corpos em decomposição e possui substâncias tóxicas. A morte ainda pode gerar morte.

Ela se espalha até quando não é percebida.

Apesar de certa melancolia quando pensa nos inci­nerados, Ronivon sabe que a melhor maneira de garantir assepsia é quando se apagam os restos mortais no fogo. Pensar no fim do mundo é pensar em montanhas de lixo e solos encharcados de inumados.

Suspende a gola do casaco e esfrega as mãos uma na outra. Olha pela janela de cinquenta centímetros ao nível da grama do jardim e percebe a fina garoa do dia. O in­verno deste ano será o mais rigoroso dos últimos trinta anos e espera que os fornos deem conta de todo o trabalho e da emissão de todo o calor possível. Retira do bolso a carta que havia deixado sobre o armário para Ernesto Wesley, que decidiu mantê-la lacrada. Dias se passaram, nem ele nem Ernesto a abriram ainda. Imagina que daqui a alguns dias estarão recebendo outra e dias depois outra e assim sucessivamente.
A porta da sala dos fornos se abre e Palmiro entra em passadas lentas resmungando o reumatismo que se acentua nos dias frios. Está vestido com duas calças, três casacos, e certamente este peso extra no vestuário lhe dificulta caminhar. Ele traz uma garrafa térmica com café fresco e copos descartáveis. Ronivon guarda a carta no bolso, apanha um copo e serve-se do café quente.
— Hoje acordei com dores por todo o corpo — diz Palmiro.
— Você precisa se cuidar.
— Eu preciso me aposentar, isso sim. Estou velho, cansado e doente. Este lugar é tudo o que tenho. Se eu for embora talvez fique jogado por aí.
— E a sua filha? Nunca mais falou com ela?
— Nunca mais. Escrevi pra ela novamente faz duas semanas e ainda não respondeu.
Qual foi a última vez que vocês se falaram?
Acho que faz uns oito anos.
Suspira o homem cansado. Ronivon bebe mais um pouco do café e contempla um pouco do dia pelos cinquenta centímetros que lhe são possíveis.
— Como está o movimento hoje?
— Está mais ou menos. Acho que não teremos muito trabalho.
— As quartas-feiras são sempre assim, não é mesmo? Pouco trabalho. Poucos corpos pra cremar — comenta Ronivon enquanto aquece as mãos segurando o copo quente.
— É, parece que sim. Acho que há dias mais propícios para a morte. Ronivon parece concordar com um discreto balançar de cabeça. Estende o copo e Palmiro coloca mais café.
— Acho que vou levar o J.G. lá pra casa. O novo zelador vai chegar e ficar com o quartinho dele — diz Ronivon.
— É uma boa coisa que você faz. J.G. precisa de amigos. É um pobre coitado que certamente vai passar a vida toda nesse lugar e depois ser enterrado embaixo de uma das roseiras que ele mesmo plantou e cuidou. Ronivon sorri. Pensar nisso o faz sentir-se bem de um certo modo.
— Acho que o J.G. sonha com isso. Ele adora esse lugar, as goiabas e as roseiras.
— Mas se caga de medo dos mortos — diz Palmiro rindo.

Eles ficam em silêncio por alguns instantes. Palmiro seca com um lenço o olho cego que lacrimeja. Palmiro di­vidiria com J.G. o quarto em que mora nos fundos do crematório caso houvesse espaço. O quarto é mínimo: uma cama de solteiro, um armário embutido de duas portas, um fogão de duas bocas, uma pia encardida e um velho criado-mudo com uma televisão de vinte polegadas sobre ele. A televisão é nova. Palmiro pagou quatrocentos reais em dez parcelas sem juros. J.G. mora no quarto ao lado, de mesma proporção, e eles dividem
o único banheiro e uma geladeira que fica instalada no almoxarifado, um cômodo estreito entre os dois quartos. O zelador antigo não morava no crematório, por isso
J.G. podia usar o quartinho. Palmiro sentirá muita falta de J.G. e das conversas bestas que têm. Ele é como um bom cachorro que pode permanecer horas ao seu lado em silêncio. Não reclama de nada. Sempre satisfeito, tem um sorriso curto nos lábios caso alguém o encare por mais de cinco segundos. Leal e companheiro. Nos fins de semana, é comum se sentarem num banco, lado a lado, e observarem em silêncio a extensão verde e bem cuidada do jardim do crematório. Palmiro costuma carregar um radinho a pilha nesses dias de folga e uma garrafa
de cachaça. São sujeitos muito simples, sem ansiedade aparente e que suportam fardos em silêncio.


*** 

Ana Paula Maia, nascida no Rio de Janeiro, é roteirista, tradutora e autora dos romances 
O habitante das falhas subterrâneas
, A guerra dos bastardos e  Entre Rinhas de cachorros e porcos abatidos. Mantém o blog:  killing-travis.blogspot.com

3 comentários :

  1. Bacana o artigo. Fico feliz com a Revista. Mais uma leitura proveitosa.
    Abraços!

    ResponderExcluir
  2. @CrisQue bom, Cris! Esperamos que volte sempre e fique à vontade para colaborar conosco.

    ResponderExcluir
  3. Dia 14 estarei lá! Adorei o trecho... é pesado como de costume! Suceesso para a Rapadura!

    Alyce

    ResponderExcluir

 

.newsletter

Cadastre-se e receba nossas atualizações diretamente em seu e-mail:

.arquivos

.facebook

.sobre

Criada com o desejo de debater temas únicos com olhares de várias perspectivas, artísticas – ou não (como diria Caê); a Revista Rapadura nasce para fomentar, no espaço livre e caótico da internet, o diálogo, a reflexão e o prazer através de matérias aglutinadas por sua natureza colaborativa.

Uma revista feita por pessoas de diferentes ideias, idades, idiossincrasias, lugares, opiniões, paladares.
Lembre-se: é doce, mas não é mole não.

.
.