Loucuras, transgressões, abandonos, iluminações, caminhadas


      
Esse texto não pretende apreender uma definição estrita para o que sejam as manifestações da loucura no cinema, mas apenas traçar algumas leituras pontuais feitas a partir de filmes que tratam direta ou indiretamente deste tema. Os poucos exemplos apresentados aqui pretendem descrever um âmbito dos possíveis significados para o conceito de loucura, nesse caso aproximada a uma idéia de “desajuste” pessoal em conflito com convenções sociais. [Este artigo contém revelações sobre o enredo (spoilers) de alguns filmes citados]

A obrigação da escrita

            Segundo Peter Buchka, no livro “Olhos não se compram”, sobre os filmes de Wim Wenders, os personagens desse diretor recorrem constantemente à atividade de escrever como meio de se manterem à parte e rompidos com um certo contexto social. A imaginação e a transgressão que se pode atingir através desta atividade é, de certa forma, um requisito para superar certas convenções que só rebaixam e agridem as chances de se encontrar novos caminhos para viver. Quando a loucura é meramente contraposta à normalidade, fica a impressão de que essa normalidade é um status inflexível, absolutamente válido. A loucura é derrotada, abandonada e rechaçada, enquanto a normalidade é correta e única. No entanto, em diversas acepções, a loucura é associada a uma energia crítica e potente, ininterrupta e plural, capaz de se alimentar dos paradoxos, dessa forma nunca se deixando cessar por qualquer âmbito de restrição.  Num exemplo de outro campo, extraído do livro “Jung e o Tarô”, de Sallie Nichols, o Louco do tarô de Marselha, a única carta sem número de identificação, pode irromper no jogo aonde quiser, à parte de qualquer desenvolvimento definido. Também aos andarilhos e aos nômades é dado o direito de movimentar-se permanentemente, de fugir à regra para, às vezes, encontrar-se na exceção.
            No filme “Farrapo Humano” (1945), de Billy Wider, é apresentado Don Birnham, um alcoólatra totalmente incapaz de desobedecer àquele que parece ser seu único destino, tornar-se um bêbado. No entanto, o maior anseio desse protagonista é o de conseguir retornar para a vida social urbana, do homem médio. Isso ele só conseguirá através da escrita, pois é através dela que quer erigir a própria vida, e então, sendo um escritor de sucesso, estará reabilitado para essa vida comum que desfila a sua frente, balançando pastas e cartolas, pelas ruas de Nova Iorque. Sua namorada e seu irmão fazem o que podem para restabelecê-lo, e ela, num dos vários bons momentos do filme, chega a comparar o vício de seu namorado com o amor que sente por ele. Um dos problemas é que, quando não alcoolizado, o protagonista só consegue ser ranzinza e estúpido. O álcool dá graça à sua vida, e parece mesmo que, apenas quando está alcoolizado, ele alcança seus melhores momentos como contador de histórias. Entretanto, a bebida, para ele, é destruidora e não funciona à parte, precisando consumir toda a sua existência. Sua força de andarilho desnorteado, ao invés de ser um dos motores que impulsionariam a criação de seus textos, é voltada apenas para aplacar sua condição de viciado.
            Comparando esse andarilho amaldiçoado pela vida social com outros clássicos de sua mesma casta, como o protagonista de “Taxi Driver” (1976), vemos uma fundamental diferença de contexto: em “Farrapo Humano” a vida social era recheada de atrativos idealizados pela cultura americana de sessenta anos atrás, um 'lar doce lar', família perfeita, emprego com status e algumas maravilhas do consumo. Em “Taxi Driver” tudo isso já está desfeito: a mulher perfeita para se casar é mera ilusão carregada de maquiagem e mesquinharias (como fica claro na cena final, onde seu rosto brilha no retrovisor, mas é preciso dispersá-lo, pois não há mais encanto ou atração possível), as ruas estão poluídas e irrecuperáveis e os bens de consumo praticamente viraram covas do espírito. Atingido pela falta de perspectivas e pela confusão que a “imundície” ao redor  trouxe, o protagonista decide tentar um enorme salto moral e se reinventa como um radical político decidido a assassinar um político popular, ou seja, alguém que foi consagrado, que chegou ao ápice exatamente pela escolha de uma sociedade que ele considera arruinada.
            As perturbações desse protagonista se desenvolvem em recortes de palavras e impressões que acabam constituindo sua ferocidade ao final. Como motorista de táxi, sua função é exatamente a de um andarilho. Fora as implicações em maioria mecânicas que um motorista precisa conhecer para dirigir um carro, o protagonista passa a maior parte de seu tempo observando as ruas, recolhendo cacos de imagens que processa do jeito que quiser. Ele passeia sem direção, mas não consegue manter-se imune. Por fim, a antipatia e a amargura acabam por dominar sua sensibilidade. A energia física que lhe sobressai à partir daí é como uma sentença sombria contra tudo aquilo que supostamente destruiu seu prazer em viver. Sua própria loucura parece um resultado da hipotética loucura social.

Terror e ressignificação

         A força desenfreada que caracteriza o protagonista de “Taxi Driver” é usada como um ingrediente elementar em muitos filmes de terror. Assassinos e forças sobrenaturais não podem ser vencidos por mecanismos comuns de punição. Colocá-los num tribunal ou expor seus rostos para a acusação pública em jornais é improvável, uma vez que eles existem subterraneamente, fora da visibilidade mundana. Nesse gênero de filmes, a única coisa que se sabe é que os psicopatas, monstros, fantasmas ou etcéteras, seguem em frente, impelidos por mistérios muitas vezes sem explicação. Manifestam-se como forças de natureza nômade que por desventura resolvem se aplicar à destruição. Esse funcionamento desnorteado dos, em geral, antagonistas, pode levar os outros personagens a perderem a consciência, tornando-se eles também violentos e inconsequentes, embora nem sempre essas perdas de consciência sejam um problema.
     Lydia, a personagem da mãe em “Os Pássaros” (1963) de Alfred Hitchcock, só consegue superar seus recalques em relação às namoradas do filho após ter passado por uma experiência traumática. Chegando em casa ainda em estado de choque por ter visto uma das vítimas dos pássaros, ela relata, alucinada e aos berros, todas as suas perturbações para Melanie, a namorada atual do filho. Passando por isso, Lydia consegue romper a frieza calculada que antes usava para manter Melanie à distância.
     Também em “Os Pássaros”, é notável a posição que Hitchcock assume em relação aos vilões da história: é de dentro da própria cidade, já evacuada pelas pessoas e tomada pelos pássaros, que ele faz sua última tomada, envolto pelas criaturas cujo único destino (dramático) era desencadear a fúria sentimental, à beira da insanidade, nos habitantes daquele lugar, pela qual as pessoas poderiam ver e serem vistas sem seus subterfúgios pessoais, suas classes e juízos. Assim, a senhora que tenta desmentir com argumentação científica e bom-senso altivo aos primeiros indícios de que a cidade está sendo atacada, é, em sua última cena, mostrada tremendo e de costas, absolutamente impotente em relação às suas crenças anteriores.
     Apesar do engrandecimento pessoal que Hitchcock provê a alguns de seus personagens, no que concerne aos protagonistas, os mocinhos, a tragédia serve principalmente para destacar as qualidades de suas personalidades “positivas”. O herói é heróico durante todo o tempo, sabe por intuição como deve lidar com a situação e nunca desliza. A heroína também consegue se sair bem durante boa parte do filme, mas como faltava um ataque à sua personalidade de burguesa caprichosa, acaba ferida em sua ingenuidade, por resolver, quase espontaneamente, entrar no aposento onde descansavam os pássaros.
      Além de exibir algumas de suas características de homem bom, o protagonista de “Os Pássaros” fornece uma lição valiosa sobre filmes de terror: assombrações e psicopatas funcionam sob regras próprias e é nelas que se deve incidir para se ter alguma chance de vitória. Logicamente, vencer nem sempre é possível, uma vez que o que em boa parte impulsiona os filmes de terror é o mero exercício de assustar, como também são meras, em muitos filmes de ação, as chacinas “legalizadas” que os heróis cometem para conquistar algum objetivo.

Alguma novidade

      Perder a consciência como meio de conquistar uma nova percepção sobre as coisas é uma operação comum em filmes que abordam a loucura. Em muitos casos a loucura se apresenta como um caminho para uma mudança necessária, e não um aspecto que deva ser repelido ou moralizado. Em “Barton Fink”(1991), dos irmãos Coen, Barton, o protagonista, só consegue superar suas visões restritivas sobre o “homem comum” do dia-a-dia - o pobre proletário subjugado pela má-formação, incapaz de se sobressair criativamente, ou seja, de ser como o próprio Barton, e por isso mesmo tão atraente para ele, porque vive uma vida sincera, não “contaminada” pelas falsidades estéreis dos artistas pretensiosos – quando seu vizinho se revela um potentíssimo selvagem, entranhado em uma energia criadora (e destruidora) que o próprio Barton talvez nunca consiga obter com sua própria obra.
     Nem sempre há tempo para mudar de perspectiva. Gustav, o maestro de “Morte em Veneza” (1971, de Luchino Visconti), está demasiadamente apegado aos seus princípios de criação, de modo que aos poucos degenera, incapaz de se sustentar perante o vigor desordenado que parece dirigir o mundo exterior.  Esse personagem, que constantemente entra em conflito com outros que tentam derrubá-lo de suas convicções (seu amigo, também músico, o louco cantor da festa), parece ter, como maior problema, a incapacidade de enxergar as próprias fragilidades, os próprios transtornos e inadequações, ou seja, de conviver com suas loucuras. Mas Gustav só alcança o apogeu de sua música na cena do concerto onde é vaiado pelo público mas celebrado por seu amigo, exatamente por ter ultrapassado suas habilidades técnicas. E ainda assim ele não consegue aceitar sua auto-superação. A legitimidade que ele almeja só é possível na figura de Tadzio, o menino andrógino, com sua beleza explícita e inalcançável. O horizonte de Gustav não cabe nas contradições brutais ou vulgares da realidade, que à todo tempo permitem e estancam o movimento e a comunicação. Quando, ao final, Tadzio enfim se converte num monumento para o sonho irrealizável de Gustav, a redenção antes da morte é a única coisa que ainda pode lhe ser oferecida.

Esboços finais

      “'A vida real está em outro lugar' diz o Pierrot le Fou de Godard e, como para provar que não quer continuar seguindo as regras reais de uma vida falsa, dirige seu carrão roubado para dentro do mar”, escreve Peter Buchka sobre Godard em “Olhos não se Compram”. Segundo Buchka, alguns dos personagens de Wim Wenders renovam a resolução do Pierrot le Fou (“O Demônio das Onze Horas”) de Godard: “Ao introduzir a corrida suicida de Robert, Wenders está fazendo uma alusão a esta cena.”, comenta ele, logo em seguida, referindo-se ao filme “No decurso do Tempo” (1976, Wim Wenders). Nesse “No Decurso do Tempo” e em “Movimento em Falso” (1975), são apresentados alguns personagens que decidem, ou são quase obrigados, a se ausentar dessa “vida falsa”. Seja por reivindicação pessoal ou má vontade com tudo que os cerca, a importância de se atirar em experiências aparentemente sem sentido, à parte da vida habitual nas cidades, os conduzem aos limites dos critérios que ordenam essa mesma vida. Por outro lado, nem o passado nem o presente deixam de atingi-los. Na verdade é apenas ao redor desses temas que ocorrem seus diálogos. Eles falam sobre solidão, divórcio, política, trabalho, cinema, roupas, sonhos... falam sobre tudo e, no entanto, de uma perspectiva diferente, distante de suas origens, fora de lugar. Não há mais aquela proximidade, física e emocional, que obrigava os personagem de alguns dos filmes anteriormente citados a conflitarem diretamente e diariamente com seus dramas. Para esses personagens de Wenders, ausentes do combate cotidiano, todos os temas passaram a vaguear por espaços indefinidos. Suas respectivas importâncias agora se assemelham a de qualquer paisagem, gesto ou som. Até mesmo a distinção entre vida e morte parece não ter mais sentido. Eles se aproximam de um ponto em que tudo poderia ser reavaliado, em que toda a ordem sensível poderia ser reconstruída, ou seja, em que a normalidade “aceita” estaria próxima de ruir, e não seria mais facilmente distinguível da loucura, ou da derrota, do erro, do isolamento.     
      “Se o louco persistisse em sua loucura, tornar-se-ia sábio”, diz a fórmula de William Blake, que talvez tenha um custo alto demais se levada a cabo. Mas, pelo menos a exemplo de um certo cinema, ainda que muito restrito aos poucos filmes descritos aqui, parece ainda importante manter-se alerta para o caráter absurdo que cada coisa pode manifestar.


Ian Schuler, é roteirista e tradutor.

3 comentários :

  1. Muito bacana. Há muitos textos na sua escrita... seria um filme intenso tanto quanto o "impossível" de Henry Miller, que "só pode ser atingido por investidas, e o nome para isso é loucura" - na Hora dos Assassinos.
    abraço
    Gisèle Miranda

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. @tecituras

    Adoro A Hora dos Assassinos, até me planejei pra tê-lo como referência no texto, mas esqueci por pressa. De qualquer forma, certamente acabei impregnado, tanto pelo Miller quanto pelo Rimbaud, talvez especialmente no título, essa coisa dos "abandonos", que está na Temporada no Inferno, e parece um conceito feroz, me deixa maravilhado. O "Iluminações" também seria obviamente, mas nem tanto, na verdade, pois não li, e acabou sendo um sentimento mais próximo do beatnick, do tipo Kerouac exaltado quase passando mal.

    Fico feliz por você ter lembrado e comentado esse livro de que gosto tanto.

    Abraços, Ian.

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