Vila-Matas e Walser: o desaparecimento e a loucura




Pieter Saenredam

Não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer.” - Robert Walser


O mito do desaparecimento do sujeito, segundo Vila-Matas, data do século XII, com os quadros de Pieter Saenredam e suas representações de interiores de igrejas protestantes (que excluía ou minimizava a presença humana, focando a sua atenção e a do espectador no edifício representado) e não de meados do século XX quando, com o privilégio da linguagem, minimizou-se o papel do sujeito e surgiram expressões como “morte do autor” e “desaparecimento do homem”. A obra do autor catalão é particularmente focada nessa questão. O livro Doutor Pasavento, escrito em 2005 e lançado no Brasil em 2010, destaca-se pelo retorno ao tema, já explorado em O Mal de Montano e Bartleby e companhia; pelo excesso de citações – não meramente ilustrativas, mas constitutivas dessa narrativa, com importante significação – e pela explicitação de sua obsessão pelo escritor suíço Robert Walser. Podemos creditar boa parte do interesse recente sobre a obra de Walser à Vila-Matas e, em menor proporção, a Gonçalo Tavares.
Em dezembro de 1956, a polícia da cidade de Herisau, na Suíça Oriental, foi chamada por crianças que tinham tropeçado no corpo de um homem congelado até a morte na neve. Naquele natal de 56, aos 78 anos, Walser fazia mais uma de suas solitárias caminhadas quando sofreu um violento ataque cardíaco. Era o fim para um autor que viveu e sofreu por mais de um quarto de século em clínicas psiquiátricas. Embora já fosse conhecido, só anos após sua morte, quando seus escritos secretos foram descobertos, ficou clara a dimensão e a importância de sua obra para a literatura alemã do século XX. Para Susan Sontag, “Um grande escritor, por seus quatro romances (Os Irmãos Tanner, O Ajudante, Jakob von Gunten e O Ladrão) que sobreviveram e por sua prosa curta, em que a musicalidade e a livre deriva da sua escrita são menos tolhidas pela trama”.
A epígrafe acima é a síntese da sua jornada por clínicas psiquiátricas. Estada opcional, pois surpreendentemente em seus últimos anos de vida, Walser – mesmo sem apresentar os sintomas da esquizofrenia e com a doença bastante reduzida – recusou-se a deixar a clínica psiquiátrica, optando assim pela solidão, pelo anonimato e pelo exílio da insanidade.  Laura Erber, em seu ensaio As Vidas Minúsculas de Robert Walser (Revista Escrita) revela que Walser ficava realmente contrariado quando os enfermeiros de Herisau lhe traziam matérias de jornal em que ele ou seu irmão Karl apareciam. Nada pior para alguém que queria sumir, desaparecer, do que ficarem lembrando a todo momento quem ele era.

Nas pouco mais de 400 páginas do livro de Vila-Matas, Walser é a citação mais frequente (o que não é pouco dentro do universo de citações) e também, o herói moral de Pasavento, aquele que melhor alcançou o desaparecimento pleno. Optou por escrever e por desaparecer.

Assim como Walser, o Pasavento de Vila-Matas anseia por desaparecer e vislumbra a Patagônia argentina como destino ideal pra isso. O fato de ter “uma pessoa por quilometro quadrado” faz com que o personagem idealize o local como perfeito para sua proposta. “Aquele que não se prepara para entrar no mundo, mas sim, para sair dele sem ser percebido”, diz Pasavento. 

As citações não se resumem a autores literários. Os pequenos e grandes fatos do dia-a-dia, descritos nos jornais locais também são alçados a condição de “citação”: Zidane, soldados mortos no Iraque, Lobo Antunes no saguão do hotel e o coro de Nápoles, tornam-se citações do mundo real e toda sua prolixa prosa cotidiana. “É nesse jogo entre acontecimentos reais e ficcionais que o autor catalão procura deslocar as notas de rodapé (citações) para o centro da página, possibilitando metaforicamente que se perceba mais concretamente o texto”, observa Gabriela Semsenato em Enrique Vila-Matas e a Estética das Margens.


Conduzida por essa narrativa meta-ficcional, em que a obra literária se discute dentro do próprio espaço da ficção, a solidão, a loucura, o silêncio e a liberdade tornam-se os temas centrais da obra, e as noções de realidade e de literatura precisamente reforçam, inspiram e afetam-se mutuamente. Nesse labiríntico “jogo” afetivo, a vida de um personagem como o professor Morante, internado em um manicômio - o qual estamos constantemente em dúvida sobre seu real estado mental - escrevendo micro-contos está intimamente ligada a vida de Robert Walser. No prolongamento dessa concepção, a escrita em si torna-se o tema do personagem.

Que este romance admita ser quase um ensaio, diria Roland Barthes.
Em sua busca pelo desaparecimento completo, o escritor Andres Pasavento cede lugar ao psiquiatra dr. Pasavento, depois para o escritor Thomas Pynchon, mais tarde o dr. Ingravalo e assim por diante, numa sucessão de personagens inventados (ou recriados) em que não apenas o nome, mas também as memórias, a história e a biografia sentimental de cada um deles é projetada uma sobre a outra. “Ser grande é saber ceder lugar a outro” e os personagens cedem. Nessa apropriação de memórias e personalidades, Vila-Matas produz um jogo de espelhos paradoxal onde o leitor encontra os personagens esforçando-se para fechar a equação “eu sou eu”. Em outras palavras: para ir fundo em seu trabalho de escritor é preciso primeiro desaparecer como autor, não importando o quão arriscado isso seja. Em determinado momento, esse jogo de espelhos, criado pelo autor, acaba por excluir todas as memórias inventadas e esse personagem que anseia com tal propriedade ser “outro”, acaba 'castigado', sendo-o. Em uma belíssima reflexão acerca desse tema, Clarice Lispector diz:
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.
Tanto em Clarice quanto em Vila-Matas, devemos frisar que isso não acontece sem conflitos. Gabriela Semsenato aponta que “pensar no dr. Pasavento como se não fosse ele mesmo indica que há uma espécie de conflito de identidades, que já atua nesta parte do enredo. Mais adiante ocorrerá também uma confluência entre recordações, misturando-se dados de uma e de outra”. Esse jogo de espelhos, cujo objetivo primeiro é “deixar de ser”, encontra ecos também na criação teatral contemporânea. O ator americano Spalding Gray narrou, em entrevista a pesquisadora Ana Berenstein um exercício praticado no Perfomance Group e que foi responsável por lhe ensinar um método de trabalho bastante similar ao conceito de desaparecimento de Vila-Matas. Ele diz:




... eu me tornava você e tentava incorporar a sua postura e quando eu conseguisse conhecer você, podia também começar a falar do jeito que você falaria... Todos nós nos conhecíamos bem porque estávamos juntos no grupo há cinco anos. Uma pessoa estaria na sua cadeira e eu na minha. E ele [Richard Schecner] diria mude. E nós trocávamos e íamos para a cadeira dessa próxima pessoa e começávamos a habitar essa pessoa. Nós começávamos com gestos, tentando pensar e falar como ela e isso continuava por um tempo, até você começar a entrar nela. Então ele dizia: mude para a próxima pessoa. E a próxima. Quando você retornava para a sua cadeira, uma hora mais tarde, você estava representando você mesmo, porque você tinha se distanciado o suficiente de si mesmo através da incorporação do outro....


Nesse processo há um perigo iminente para o ator e para o autor/personagem: e se Pasavento deixasse de ser ele, mas não chegasse a ser outro, tornando-se algo pela metade, incompleto? O receio de tornar-se uma ruína de si, isto é, algo decadente material e moralmente, é também uma das obsessões de Borges no conto Ruínas Circulares, do livro Ficções. Na obra de Borges há uma aldeia onde a imediata obrigação é, através do “sonho”, criar um outro homem com integridade minuciosa e impô-lo a realidade. A criatura de Borges, porém, - assim como Pasavento, Ingravalo, Pinchon - perde suas recordações anteriores e amanhece sem memória de sua criação. E assim, o homem segue criando sua criatura, começando pelo coração, chegando ao esqueleto, as pálpebras, os cabelos. Tudo é meticulosamente criado. Até que, “no sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou”. Borges faz o caminho inverso (dentro para fora) colocando o coração metafórico como indicador de início da vida enquanto Pasavento cria suas personagens de “fora para dentro” (primeiro o nome, depois as recordações).

Not to be reproduced -
René Magritte
 Mas, Borges também cria seu jogo de espelhos e, em sua "ruína", o criador compreende “com alívio, com humilhação e com terror” que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando.


No Pasavento de Vila-Matas há uma angústia, um terror gerado pelo sucesso midiático e pelos convites para que escritores se exibam em conferências, mesas redondas ou festas literárias sempre acompanhadas das constrangedoras “felicitações superficiais, dos tapas nas costas e dos pedidos de autógrafos” que envaidecem, mas em nada melhoram a vida do escritor. Autor e obra se distinguem aí e seguem vidas paralelas e, mesmo o meio literário “cria” suas celebridades e seus famosos. Nesse contexto, a ironia maior do dr. Pasavento é propor o desaparecimento pleno em tempos de excesso (e anseio) de informação e visibilidade. O mesmo desaparecimento proposto por Walser.


Sugestão de leitura:

Doutor Pasavento – Enrique Vila-Mattas
Roland Barthes – Roland Barthes
Questão de ênfase – Susan Sontag
As Vidas Minúsculas de Robert Walser (Revista Escrita) – Laura Erber
Enrique Vila-Matas e a Estética das Margens – Gabriela Semsenato
Entrevista: Spalding Gray a Ana Berenstein – Revista O Percevejo
Ruínas Circulares – Jorge Luis Borges
A Paixão Segundo GH - Clarice Lispector


Christian Fischgold é carioca; formado em cinema, é roteirista e editor da revista RapaDura.

6 comentários :

  1. No final desse texto é proposta reflexão a cerca das torrentes de informações superficiais que batem intermitentemente nas pedras com algum musgo, sendo elas grandes, de médio tamanho ou cascalhos levados pela correnteza e lançados de volta à terra. Os musgos são os sobejos de cultura, lembranças, preconceitos e certezas temporárias, posto que organismos vivos. Apesar da menção à pedra sugerir uma contraposição ao breve homem sentindo a existência como um processo de desaparecimento, basta recordar que o mais ameaçador dos picos decompor-se-á.

    Pode parecer um paradoxo o fato de o recolhido Walser ter, quando jovem, logrado tornar-se um ator. O ator no palco com as atenções voltadas para o foco de luz que mostra a direção onde a fala da vez concentra a eternidade do momento de potência artístico - supondo que o ator esteja envidando esforço nesse sentido. Desde moço adepto das longas caminhadas, Walser procurou publicar seus poemas no jornal Der Bund e na revista Die Insel, ademais de ter seus contos publicados em vários jornais e revistas, sendo posteriormente compilados e publicados. Seus primeiros romances também encontraram editores. Nas suas longas caminhadas noturnas, o escritor suíço demonstrava necessidade de afastar-se, estar só, e estando no meio da escuridão verifica-se, provavelmente, o desejo de experimentar o vazio, o nada, mergulhando nas profundezas de si mesmo, ou no abismo da inexistência. Essa curiosidade e atração pelo vislumbre do próprio desaparecimento é traço universal do ser humano. Após a experiência da Guerra e a morte de dois irmãos, tornou-se mais isolado. Não acredito que Walser aceitou a internação voluntariamente, após um colapso mental. Quando foi transladado, contra sua vontade, para outro sanatório, Walser disse a Carl Seelig que "estava lá para enlouquecer, e não para escrever". Posteriormente, se recusou a deixar o sanatório, que é uma fábrica de loucos. Foucault cita a prisão, a clínica, entre outros, como instituições responsáveis pela opressão e pela manutenção da centralização do poder. Deleuze segue e põe-se totalmente contra a internação do indivíduo com princípio de esquizofrenia, e que é posto em um "hospital repressivo", produzindo uma "criatura de hospital".

    A sublimação da vida, no caso de Walser, acaba tornando-se eternidade no âmbito da existência humana no planeta terra. Ele agiganta-se por sua arte e até por sua morte, assustadoramente antevista por ele mesmo em escritos anteriores, de onde Hermann Hesse tira inspiração para escrever Knulp, a história de um jogral que tem morte tão semelhante a de Walser. O introspectivo Van Gogh e o isolado e falido Rembrandt, por meio da resistência impressa pela arte, provocaram o oposto ao esquecimento e ao desaparecimento. Eles tornaram-se exemplos da resistência, sobre a qual escreve Deleuze. Quanto a emergência das informações hodiernamente, elas são reflexo da frouxidão de compromissos desta sociedade da incerteza e da transitoriedade célere, cujos resultados são, quase sempre, inteiramente ignorados. Essas informações não são conhecimento verdadeiro, são reproduções de pensamentos dominantes, contaminadas por lugares-comuns e perspectivas viciadas, pois não há interesse ou tempo para o relato, para a análise e para a reação inteiramente livres.

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  2. No final desse texto é proposta reflexão a cerca das torrentes de informações superficiais que batem intermitentemente nas pedras com algum musgo, sendo elas grandes, de médio tamanho ou cascalhos levados pela correnteza e lançados de volta à terra. Os musgos são os sobejos de cultura, lembranças, preconceitos e certezas temporárias, posto que organismos vivos. Apesar da menção à pedra sugerir uma contraposição ao breve homem sentindo a existência como um processo de desaparecimento, basta recordar que o mais ameaçador dos picos decompor-se-á.

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  3. Pode parecer um paradoxo o fato de o recolhido Walser ter, quando jovem, logrado tornar-se um ator. O ator no palco com as atenções voltadas para o foco de luz que mostra a direção onde a fala da vez concentra a eternidade do momento de potência artístico - supondo que o ator esteja envidando esforço nesse sentido. Desde moço adepto das longas caminhadas, Walser procurou publicar seus poemas no jornal Der Bund e na revista Die Insel, ademais de ter seus contos publicados em vários jornais e revistas, sendo posteriormente compilados e publicados. Seus primeiros romances também encontraram editores. Nas suas longas caminhadas noturnas, o escritor suíço demonstrava necessidade de afastar-se, estar só, e estando no meio da escuridão verifica-se, provavelmente, o desejo de experimentar o vazio, o nada, mergulhando nas profundezas de si mesmo, ou no abismo da inexistência. Essa curiosidade e atração pelo vislumbre do próprio desaparecimento é traço universal do ser humano. Após a experiência da Guerra e a morte de dois irmãos, tornou-se mais isolado. Não acredito que Walser aceitou a internação voluntariamente, após um colapso mental. Quando foi transladado, contra sua vontade, para outro sanatório, Walser disse a Carl Seelig que "estava lá para enlouquecer, e não para escrever". Posteriormente, se recusou a deixar o sanatório, que é uma fábrica de loucos. Foucault cita a prisão, a clínica, entre outros, como instituições responsáveis pela opressão e pela manutenção da centralização do poder. Deleuze segue e põe-se totalmente contra a internação do indivíduo com princípio de esquizofrenia, e que é posto em um "hospital repressivo", produzindo uma "criatura de hospital".

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  4. A sublimação da vida, no caso de Walser, acaba tornando-se eternidade no âmbito da existência humana no planeta terra. Ele agiganta-se por sua arte e até por sua morte, assustadoramente antevista por ele mesmo em escritos anteriores, de onde Hermann Hesse tira inspiração para escrever Knulp, a história de um jogral que tem morte tão semelhante a de Walser. O introspectivo Van Gogh e o isolado e falido Rembrandt, por meio da resistência impressa pela arte, provocaram o oposto ao esquecimento e ao desaparecimento. Eles tornaram-se exemplos da resistência, sobre a qual escreve Deleuze. Quanto a emergência das informações hodiernamente, elas são reflexo da frouxidão de compromissos desta sociedade da incerteza e da transitoriedade célere, cujos resultados são, quase sempre, inteiramente ignorados. Essas informações não são conhecimento verdadeiro, são reproduções de pensamentos dominantes, contaminadas por lugares-comuns e perspectivas viciadas, pois não há interesse ou tempo para o relato, para a análise e para a reação inteiramente livres.

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  5. Lembrou-se o percurso do Bloom n'Uma Viagem à Índia, do Gonçalo Tavares.
    Bem costurado, parabéns!

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  6. Sim, Marco, acredito que há um diálogo entre esses dois livros / autores. Grande abraço!

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