Corpo & Neve (1ª parte)




Herisau, Suiça, 1956

Estávamos entediados – fazia frio naquela manhã de Natal. Andávamos por apenas andar, sem nada o que fazer, a esmo por uma cidade gelada e coberta de uma neve branquíssima. Dos nossos presentes abertos ainda na madrugada, nenhum era exatamente aqueles que queríamos. E talvez por isso eu tenha logo passado bem cedo pela casa de Peter, perguntando se ele queria dar um volta; ele deu de ombros como quem diz "tanto faz" e assim saímos.

Herisau estava muda, poucos carros, poucas pessoas, pouca vida, um tédio para nós, crianças. Andamos um tempo em silêncio, meio perdidos e sem direção; Peter catou uma vara largada pela rua para se ocupar enquanto flanávamos; vergastando a vara no vazio, cortava o ar com assovios agudos... De súbito se disse pirata com ela e eu o acompanhei na fantasia e fiz minha espada de um exemplar caído e úmido do Herisau Zeitung, o jornal da cidade. Logo, eu era um contra-almirante da marinha real britânica, mas fui derrotado rápido e feito prisioneiro – sentenciado ao exílio! Eu deveria ser levado para uma ilha misteriosa e de lá cumprir minha pena... Embrenhamos os dois pelos bosques próximos, armei a minha fuga da cadeia gelada lá, como um verdadeiro herói que era! – enfim tínhamos algo para nos ocuparmos naquela quinta-feira de feriado. A neve que recomeçara a cair deixava tudo melhor, rapidamente, dos sete mares passamos para as trincheiras da I Guerra – eu sempre em fuga. E depois fui perseguido pelos ares pelo “Barão Von” Peter no seu bombardeiro negro e eu num avião cuspindo fumaça, tentando fugir das investidas de bolas de neve – finalmente o Natal fazia sentido!

Avistei um descampado e corri para lá, nele eu seria um alvo fácil, mas Peter tinha uma mira péssima! Não tínhamos nos dado conta de que estávamos tão longe de casa. “Por que não?” – pensei. A minha chance era mesmo a cerca – uma bola de neve zuniu ao lado da minha cabeça – passei por um desvão no arame farpado e corri na direção das árvores mais longes, a neve do lado dela parecia outra, quase intocada e meus pés nela afundavam – flosh-flosh –, mas corri; ao longe ouvia a voz de Peter a me chamar. (Se soubesse com que nos depararíamos, preferiria mil bolas de neve na cara a ultrapassar aquela cerca). A cerca margeava uma enorme construção cinza, fria, com torre e uma chaminé silenciosa – porém viva –, o local era o assim chamado “Hospital” de Herisau; a cerca seguia sinuosa, subindo o vale já às margens dos limites das cidades. Estaquei mais uma vez diante dela, senti a presença de Peter ao meu lado – a nossa diversão acabava ali. A neve que caíra mais cedo deveria ter coberto os rastros mais evidentes da passagem do homem, mas não foi assim que aconteceu. As pegadas pareciam ter resistido o tempo necessário até que alguém encontrasse o que nela repousava. Nossa respiração desapareceu e só se ouviam as árvores do lindo vale... e a neve.

Durante a primavera e o verão aquelas paragens são um agradável bosque de vegetação rasteira e algumas dezenas de pinheiros, carvalhos e ciprestes centenários plantados ali, há muito tempo pelos administradores do Hopsital – é um lugar muito procurado para piqueniques – e não raro esquilos e lebres aparecerem, surpreendendo os frequentadores. Há de se deixar claro que tudo isto é feito do lado de cá da cerca, que separa a rotina do Hospital do mundo aqui fora. As pessoas de Herisau não gostam do seu hospício. Evitam falar dele. Evitam falar das pessoas que lá estão. E o inverno não altera essa impressão, pelo contrário, o frio muda tudo. A tristeza das árvores sem folhas, expondo a verdade nos seus galhos retorcidos, a grama queimada, tomada pela neve, que parece mais densa pelos lados de lá evidenciam o humor daquelas colinas num silêncio derradeiro e de abandono, o qual somente é quebrado pela rotina do local reservado aos doentes. Há muitas histórias sobre o lugar, pouco se sabe onde reside a verdade – como separar os fatos das lendas dos temores pessoais de cada um? Pouco importa para mim e Peter, pouco importou... vivemos a nossa própria história com aquele lugar e um de seus habitantes.

Eu percebi algo de estranho antes de Peter e por isso parei... das pequenas colinas que levavam ao centro psiquiátrico Krombach vi algo que destoava  de tudo ali. As pegadas sobreviventes à neve eram fundas, a distância entre uma e outra era pouca, tortas e vacilantes; sinais claros de que seu dono cambaleava ao deixá-las. Segui-las foi inevitável. A cada passo, meu coração se elevava dentro no peito, o frio já não era sentido, de Peter eu ouvia a respiração ofegante e no vasto daquele cenário branco, víamos a trilha completa que as pegadas faziam: seguiam rente à cerca do Hospício. Uma mancha escura borrava o branco, no fundo do vale. Corremos. Um homem emborcado na neve. Congelamos. Não sei quanto tempo ficamos em silêncio: o chapéu caído, não víamos o rosto do homem emborcado na neve, um grosso casaco de feltro, elegância que não combinava com o lugar. Quem agiu primeiro foi Peter, com a vara que não abandonava e que antes era uma espada de pirata, e agora servia para verificarmos com cautela quem era aquele homem-da-neve. Eu, há dois passos dele e com a mão no seu ombro, tremia. Com a ponta da vara, Peter cutucou a sola do sapato do homem... Nada. Outras tentativas... Nada. Notei que as mãos do homem estavam encobertas pelo peito; Peter, então tentou empurrando com mais força a vara nas costas do caído... Nada. Decidimos virá-lo...

O rosto estava vermelho pelo frio, transparecia uma calma, um silêncio como do mundo a nossa volta, os olhos vidrados bem abertos, mirando o vazio, negaceavam a verdade para nós, sacudimos com força o homem-da-neve quase gritando: “Senhor, levante-se... Senhor!...” Então, como despertados de um sonho, Peter e eu nos demos conta da realidade: o homem estava morto – e por um momento só a neve parecia viva ali, ao cair com mais força no vale, nós tocávamos um cadáver gelado. Peter de gatinhas e de costas se afastou gritando e eu me levantei muito rápido, tropeçando nos próprios pés, embolávamos misturados a neve e ao horror, as pernas não agindo conforme as ordens do cérebro, queríamos correr para longe dali e corremos, pulamos a cerca, mas não fomos embora... o silêncio do morto nos chamava, decidíamos o que fazer. Peter pela primeira vez soltara a vara – perdera todo seu encanto ao tocar no morto. “Vamos chamar ajuda”, disse ele olhando para o hospício.

Decidimos nos dividir: Peter correu em direção à cidade, pra buscar ajuda e eu alguém no Hospício... Corria com dificuldade, ignorei o caminho de tijolos, sem neve, aberto a sal grosso pelos funcionários do hospital e atravessava a neve espessa – flosh, flosh – até a altura dos meus joelhos. Gosto da neve, mesmo quando vadeamos por nela muito tempo e mesmo de sapatos grossos os pés gelam e o frio sobe até as batatas da perna, mas dessa vez, pela primeira vez, eu sentia dor e não queria estar rasgando aquele terreno. Às portas do Krombach, o hospício, fiquei indeciso e busquei consolo no que deixava para trás (sem ainda saber o quão atrás deixava); do alto do morro eu via o caminho marcado por Peter, tão sinuoso e cambaleante quanto o do homem-da-neve e ele como uma mancha, uma rocha, um elemento destoante daquela paisagem fria e branca do Natal de 56. Dali em diante a lembrança: o peso do contraste da imagem do homem e a leveza do brilho da neve ao redor dele, colados à memória.

Num primeiro momento, o branco de lá de dentro me foi mais violento do que o da neve de fora, ferindo meus olhos com o reflexo reluzente dos azulejos impolutos das paredes dos corredores, das portas, dos pacientes; para onde olhava, o branco preenchia qualquer tentativa de dispersão ou fuga. Corria em busca de alguém que pudesse me ajudar e de alguma forma consegui me fazer entender com a primeira pessoa que trombei – uma senhora forte de buço pronunciado – um enfermeiro se juntou a ela e sem agasalhos mesmo, voltamos ao bosque, dessa vez pela trilha de tijolos; ao longe Peter já tinha regressado ao corpo e junto a ele um policial, que lhe segurava a mão, outro guarda observava um terceiro homem, com máquina fotográfica, ajoelhado, que tirava fotos do cadáver. Ao nos ver, dirigiu-se para nós e o flash espocou no meu rosto e antes que percebesse, Peter estava ao meu lado e outra foto foi batida; de soslaio, observei a senhora e o enfermeiro agachados tentando formas de reanimar o homem: “É o senhor Walser, está morto, não podemos fazer mais nada.”, disse ela virando-se para um dos guardas, o outro com o bloco na mão veio em nossa direção e nos fazendo perguntas que não ouvíamos e não respondíamos. Todo o resto é vago. Passamos um bom tempo daquele dia de Natal na delegacia, fomos perguntados de tudo e por todos – policiais, médicos, repórteres... Peter e eu estávamos acuados e receosos – nós nos sentíamos como criminosos – eu chorei. Peter chorou. E só a noite pudemos ir para casa, um senhor entrou pela delegacia e assim que o vi tirar o chapéu, quase gritei: vislumbrei o rosto do homem-da-neve e não o do meu amado pai. Agarrei-me a ele e chorei copiosamente como o cadáver à neve...

Os dias que se seguiram a minha descoberta e de Peter foram diametralmente opostos as aflições passadas por nós. Esclarecidas as circunstâncias em que encontramos o corpo morto na neve do escritor recluso Robert Walser – e que todas as crianças de Herisau conheciam pela excentricidade de seus passeios –, em nossas portas, dia a dia, vizinhos, amigos e parentes vinham nos visitar nos felicitando por nossa coragem e ação, mesmo que Peter e eu não compreendêssemos o nosso gesto. Repórteres do Herisau Zeitung (e de outros jornais, até da capital!) mais de uma vez tomaram nota do que falávamos; perdemos o número de fotos que tiramos, ganhávamos doces na padaria e nos deixavam entrar de graça nas matinês do cinema! Homens de moral duvidosa queriam nos contratar para aparecermos publicamente em troca de algumas barras de chocolate: éramos celebridades em Herisau! A todo instante havia dedos apontados para nós: “Olhem: são eles”... “Vejam, aquele não é o Peter?”... “Não são os nossos meninos, nossos pequenos heróis, que vão ali?”... E coisas do gênero. Eu adorava aquilo! Todas as manhãs punha o cabelo penteado de lado, furtava algumas gotas da água de colônia da mamãe... andava com empáfia pelas ruas, quase desfilando. Peter, que não se importava e ria das minhas atitudes. Com o tempo, ele cada vez mais parecia incomodado com as manifestações do povo em relação a nós. Começou a evitar certos lugares, em certos horários, em certos dias. O excesso de exposição não fez bem a nenhum de nós, na verdade. E certa vez meu amigo me confessou que seu desejo era sumir, desaparecer. Não me esqueço do dia em que passei por sua casa e o olhei vidrado à janela vendo a neve cair, parecia com medo – não quis sair aquele dia, mas me lembro bem dele dizendo: “Eu apenas sou feliz quando neva.”, naquela manhã de Natal – já não tinha essa certeza.

Além da introspecção, Peter tornava-se arredio. Passou a fugir das pessoas quando notava que falavam dele, a se esconder, a não sair. O início das aulas só piorou as coisas: passou a enfrentar aqueles que insistiam sobre a morte de Walser, dizia-lhes que tudo aquilo era uma besteira, que nós não tínhamos feito nada de especial e que o homem continuava morto. Foi na escola também que percebi que não éramos mais os mesmos garotos. Durante a segunda semana de aulas em que a neve ensaiava derreter, mas insistia a cair, por toda Herisau que se deu nosso afastamento. Era recreio e talvez eu tenha mesmo exagerado uma coisa ou outra. Como de hábito, eu contava mais uma vez a história do homem-na-neve, estava de pé num banco, rodeado de outros alunos. Peter assistia a tudo do outro lado do pátio observando impassível e meio sombrio, segurando um sanduíche mordido em sua mão. A briga foi rápida: ele largou o lanche e correu na minha direção gritando, a atenção dos alunos desviada, parei minha narração. Ele pulou em cima de mim e caímos por sobre a neve, continuou a gritar enquanto me batia, eu estava imobilizado. E antes de tudo surpreso e chocado, algo dentro de mim desprezava as pancadas e queria saber o porquê do meu melhor amigo estar me espancando no pátio da escola, na frente de centenas de alunos. Peter me socava sem critério, alucinado, a intenção não era fazer doer – mas doía. Eu tentava me desvencilhar e ele batia mais; eu gritava e pedia que parasse... nada. (Respingos do meu sangue na neve). Eu achava que iria morrer e ninguém fazia nada. Sentia a visão embaçar e só conseguia ver o cinza do céu e os flocos de neve que voltavam a cair, a cada soco era como se fosse jogado, mergulhado para aquela manhã de Natal e voltava, sem fôlego para realidade, para o soco seguinte me afogar de novo; eu chorava e Peter também (e nenhum professor ou bedel apareciam para dar fim aquilo!), fechei as mãos sobre o chão gelado já aceitando o fato de que não me levantaria mais dali; sem saber como, minha mão encontrou um pedra, agarrei com força, primeiro buscando apoio, mas estava solta, meus dedos se fecharam sobre ela... foi um estalido seco que ouvi quando Peter desabou ao meu lado na neve.

A manhã estava completa com lágrimas e sangue na neve.




Mauro Siqueira é flamenguista e escorpiano; fomentador de redes sociais e não sai do Twitter, é ficcionista, leitor foraz, autor do livro de contos De vermes e outros animais rastejantes. Participa de vários projetos online e tem contos aqui e ali pela rede. Colabora com o blog da Livraria Blooks e é editor da Revista RapaDura.

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