Sobre as possibilidades dos quadrinhos

(ou: Como Henfil mudou meu jeito de ver as coisas)



Lembro bem como o descobri. Talvez de um jeito meio cabeçudo, ou pseudo demais... Que seja. Foi numa aula de História no colegial, a professora falava sobre o processo de Anistia em 1979. Colocou para tocar "O bêbado e a equilibrista", que trazia um enigma em seus versos: "Meu Brasil!.../Que sonha com a volta/Do irmão do Henfil". Quem era Henfil, além de irmão de Betinho? Posso dizer que uma busca apressada na internet mudou um pouco minha vida: fui apresentada às tirinhas do Fradim.
O traço simples, quase um risco só que forma o personagem, o humor rápido, quase infantil, mas sempre ferino, me capturou na hora. Apesar da simplicidade dos poucos detalhes e traços rápidos e econômicos para formar uma história, tudo era muito expressivo naqueles quadrinhos: as onomatopeias, as feições...

Sempre gostara de quadrinhos, mas aos 16 anos eles não faziam parte efetiva da minha vida, como faziam Silverchair e Nirvana, por exemplo. Talvez, como toda criança, fui praticamente alfabetizada com os quadrinhos da Turma da Mônica. Na minha casa, livros infantis não tinham muitos, mas quase semanalmente um novo gibi aparecia, para minha alegria e dos meus irmãos. Delícia era quando cada um de nós podia ir à banca e escolher um: minha irmã mais nova ficava sempre com a Magali; eu adorava o Chico Bento, era sempre minha escolha; meu irmão mais velho variava entre Cascão, Cebolinha e Mônica. Anos depois, quadrinhos se resumiam às tirinhas dos cadernos de Cultura: Calvin, Garfield, Piratas do Tietê, Aline, o que caísse na minha mão. Mas nada muito sério.
A partir dos quadrinhos de Fradim, fui atrás da obra de Henfil. A adorável Graúna e sua turma; o Ubaldo, o paranóico... A genialidade de Henfil se escondia em sua simplicidade: um ponto de exclamação, por exemplo, dá forma à Graúna. Mas foi na faculdade que realmente fui fisgada. Foi quando decidi (sob influência de uma professora apaixonada pela pesquisa e bastante insistente e paciente) fazer uma Iniciação Científica sobre Ubaldo, o paranóico.


Talvez os amantes desde sempre de quadrinhos me achem uma herege, mas comecei a me apaixonar de forma mais irreversível por eles a partir do momento em que passei a estudar sua teoria. Os livros sobre o assunto não são muitos e é possível que por isso o tema se torne mais intrigante. E conseguir perceber o que alguns recursos representam, e o que eles influenciaram no mundo das artes foi algo revelador.

O mais incrível e inspirador nos quadrinhos são as suas possibilidades. Entre um quadro e outro, elas são infinitas. As ações são completas pelo leitor, que deve imaginar o que ocorre nesse breve intervalo. Imagem e texto podem fazer muito mais do que apenas se complementarem, podem representar coisas distintas. Além disso, o próprio quadro pode inexistir ou ter formatos diferentes, tornando a coisa mais complexa, mais rica.

A possibilidades não se estendem apenas aos seus recursos, mas também ao gênero. Quadrinhos podem falar de qualquer coisa, sem que o assunto se torne raso por isso (um grande e falso preconceito). Um desenho simples e quase sem outros elementos, além dos personagens, como as tirinhas de Henfil, traz uma série de significados e coisas a se pensar. Assim também é o trabalho de Sempé, que com pequenas coisas consegue trazer poesia e bom humor ao cotidiano. Ou os quadrinhos de Will Eisner, desenhos lindos, verdadeiras pinturas, que nos conta crônicas de um lugar. Ou talvez Moebius, com todas aquelas inventividades futurísticas...

O universo dos quadrinhos é tão amplo, que pode ser jornalismo, como Joe Sacco e, (por que não?) com Ubaldo, o paranóico; arte (o que mais poderia ser Little Nemo?); literatura, para ficar em exemplos recentes Retalhos e Umbigo sem fundo são belas obras; influenciar o cinema (a rapidez e os cortes dos quadros de Valentina, de Crepax, fizeram escola)...



Poderia continuar dando uma série de exemplos. O mais importante é que apesar dessa montoeira de teoria que li, consigo ainda ler um bom quadrinho sem pensar em que período ele se enquadra, quais recursos gráficos foram utilizados e o que eles representam dentro da narrativa. Apesar dessas coisas serem importantes para minha pesquisa (que se encaminha para um mestrado), quadrinhos são mais que meu objeto de análise. Eles me divertem, me emocionam e me fazem pensar.



Juliana Leuenroth, jornalista, impaciente, adora ler. Tem uma preferência mórbida por biografias.

3 comentários :

  1. Oi !
    talvez a minha história com quadrinhos não tenha começado com coisas tão bacanas como as do henfil ... me lembro muito de turma da monica e depois disso um branco que foi preenchido por heróis em sua maioria e nos últimos 6 anos por coisas boas de verdade ( nada contra os heróis ).
    A variedade de formas e o alcance dos quadrinhos não tem limite e acho que é isso que me chama a atenção. Descobrir Will Weisner, Neil Gaiman, Dave Mckean entre tantas outras pessoas talentosas ampliou muito minha visão de mundo.
    Adorei o texto.
    Parabéns e que os quadrinhos sempre estejam presentes

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. OS desenhos do Henfil marcaram minha infância e pré adolescencia. Quando li o "ABC do entreguismo no Brasil" aos 12 anos, os desenhos dele me deram uma aula da realidade crua e nua do poder economico e a ditadura financiada por ele.

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