Fronteiras poéticas – arte do Vale do Jequitinhonha








Se os conceitos circulam, flutuam, o que persiste? E em que se igualam arte e artesanato? As experiências com os artistas do Vale do Jequitinhonha inspiram esse passeio por tentativas de respostas.

O que une arte e artesanato é a vontade humana de criar, que se estende sobre a vontade de acolher, de ter para si uma obra, usufruir da criação de um outro como se fosse sua própria. Entra-se, assim, no jogo da criação. Criar é abrir caminhos, aprender com a experiência, ver antes. Olhar a madeira e, nela, ver a obra pronta. Na greta do barranco, ver a terra úmida, fria e, com o tato, sentir o tônus do barro. É saber, pelo conhecimento da matéria prima, que o barro é bom e dará um pássaro grande, uma boneca negra amamentando seu bebê, uma roda de ciranda. Enquanto escava e sua ao sol, criar é deixar a imaginação agir. E se impõe como uma necessidade, mesmo quando não se dispõe de um aparato discursivo capaz de sustentar e transmitir por palavras o processo que envolve a própria criação. Lançar-se no mundo das artes e do artesanato é inventar outras formas de discurso, outros léxicos, arquitetar caminhos, cruzar veredas. Noemisa Batista dos Santos, ao contrário de Ulisses Pereira Chaves e da contadora de histórias e entalhadora Josefa Alves dos Reis (Zefa), pouco fala sobre suas obras ou sobre si mesma. Mas suas esculturas são eloqüentes e definem um estilo, que é simultaneamente econômico e transbordante. Avesso e direito: ao mesmo tempo parcimonioso – no uso das cores, nas proporções e nos traços adotados – e exuberante. Sua paleta de cores quase não varia, e nela predominam tons terrosos, iluminados pelo contraste com o branco. Observando a temática que vem desenvolvendo há cerca de 30 anos, percebe-se que uma fina costura liga suas obras aos valores e às práticas correntes na vida sertaneja. Uma vida de mulher, que não deixa fora a imaginação e o desejo. Que revela o apego à família, a consciência da importância das letras e da escola, o encantamento com a diversidade das vestes cerimoniais, com os rituais propiciados pela Igreja católica. Sua predileção pelas noivas é, possivelmente, anterior à expansão dessa temática por todo o Vale. Fala de sentimentos profundos e define, por oposição, sua identidade de mulher que não se casou: “as noivas são as outras”. Ao contrário de Ulisses, Noemisa jamais se confunde com suas obras.



Não se casou para que um dia, quando for a sua hora, possa ir para o céu vestida de anjo. E antes dessa ida que “vai ser quando Deus quiser!”, a artista não economiza dons. Com a mesma determinação com que produz as delicadas peças em cerâmica, cuida prestimosa da família, hoje atravessada por doenças e miséria crônicas. Embora pareça evidente aos que a conhecem seus vínculos afetivos com a produção sensível, Noemisa deve copiar suas obras a pedidos. Mas, mesmo nessa repetição, ela deixa rastros de seus pensamentos. A repetição por encomenda ganha por suas mãos o calor que falta à lógica insistente do lucro que, sem descanso, cria amarras para o processo criativo. Repetir, fazer de novo, nunca é fazer o mesmo. 

Da mesma forma, quando Zezinha (Maria José Gomes da Silva) repete voluntariamente, em sua casa em Coqueiro Campo, as cercas inauguradas por Ulisses Pereira Chaves em Caraí – cercas feitas com cacos e restos de esculturas que quebram durante o processo de feitura –, ela também se deixa tocar pela poesia. Poesia que nasce da descontextualização dos corpos humanos fragmentados, e que dá novos sentidos para as obras que racham. Curioso é que até poucos anos, quando se perguntava a uma ceramista “mais antiga”, o que ela fez durante sua vida profissional, a resposta mais ouvida era: “Fiz panelas, potes e umas caqueiras”. “Caqueiras” é o modo pelo qual as ceramistas se referem às miudezas, às peças que conservam os pequenos formatos. As mais jovens também usam a expressão quando querem parecer modestas, talvez sem se darem conta de que esse uso encobre, um tanto quanto pejorativamente, a atividade pelo que ela não é, ou seja, pelos cacos que produz, pelo que quebra, pelo que desqualifica e não pelo que qualifica. 

Quando, a exemplo de Ulisses, Zezinha introduz suas bonecas que trincam em outro regime de imagens, ela parece ter igualmente uma experiência originária. E em vez de permanecerem como coisas inservíveis, as partes de obras que estouram no forno, que racham, vão sendo encarapitadas no alto dos mourões e dos galhos de árvores no quintal, criando mais que cenários inesperados. E fazem da repetição uma nova experimentação. De certa forma, as bonecas fragmentadas criam realidades, revogam certezas sedimentadas, desafiam poeticamente as leis matemáticas e tornam-se inteiras, sendo pedaços e partes.

Ao criar suas cercas fantasmagóricas, com cabeças espetadas no alto, Ulisses retém, a seu modo, o que pode. E, não apenas porque retém as cabeças, tantas cabeças, que nos enreda em seu atormentado processo mental. No mundo de Ulisses ninguém é admitido sem passar por provas. E não se trata de retórica. Trata-se de indagações incontidas, transbordantes. O artista recebe os que o visitam com desafios: “Essa terra veio para onde? Está onde? E vai para onde? Foi criada, gerada ou nascida?” Diante da surpresa e do silêncio dos que, desavisados, são assim inquiridos, Ulisses persiste: “As respostas estão aí. Tem que estar ligado nas respostas. O barro? O barro está vivo. O sol? O sol, quando ele não está em cima, ele foi para onde? Por onde ele dá a volta? Porque ele nasce aqui (apontou), ele esconde lá (apontou), ele volta por baixo. Mas por onde ele esconde quando não está mais aqui?”

Ulisses diz que cada pessoa tem seu dom próprio de fazer arte. E que as pessoas que o procuram “querem isso, querem aquilo, querem ser o professor do próprio artista! Porque minhas peças são imagem do que eu faço, não imagem de alguma coisa. Imagem e semelhança do que eu sou”. Com essa recepção, o artista desestabiliza, em poucos minutos de contato, o chão das aparências, das boas maneiras, das introduções. Ele radicaliza, atropela as cortesias: quer substância. Ali, como em alguns raros territórios da arte, só entra inteiramente quem procura, quem quer procurar. E não quem quer encontrar pronto. Pois nada está pronto. Tudo, inclusive cada um de nós, são pedaços em busca de unidade.

Amplo, imenso, aberto. No mundo das artes nem sempre a invenção se apresenta espontaneamente e mobiliza, abre espaços, alarga a compreensão. Às vezes, os caminhos são outros. E o amplo, imenso, aberto mostra-se como o que não é disperso. Problemas de saúde, uma tendinite grave, fizeram Maria Lira abandonar a cerâmica como sua principal maneira de expressão. Desviada de sua trilha, viu-se lançada no aberto de todas as possibilidades, menos uma, a cerâmica. O aberto para Maria Lira foi descaminho e dor. Sofrimento que só teve fim na descoberta de novos canais expressivos – as pinturas com pigmentos de terras coloridas, sobre pedregulhos de rios ou papel. Para essa artista, o aberto só se fez todo aberto ao ser contido. 



Ulisses Mendes (2007), das artes da madeira, de Itinga, diz que um dia foi visitar Ulisses Pereira Chaves, em sua casa:

Aí eu fui lá, que é difícil chegar lá na casa dele. Os maiores artistas ficam bem distantes da cidade. Interessante. Longe da cidade, na zona rural, bem longe. Sobe morro, desce morro. Ali que está o bom artista. Quem convive muito com a natureza, aquelas coisas, ele apega muito com Deus, ta sozinho por ali. Ali ele aperfeiçoa aquele lado artístico dele, e cria aquele trabalho com aquele som natural. A floresta, o som natural, também ele ruge. Ele ruge, ele tem aquele som na mata, montanhas. Se a gente aprofundar muito naquilo ali, você escuta vozes, você escuta vento conversar. Eu já aprofundei tanto nesse lado que a gente fala espiritual, original, científico, que já ouvi as águas cantarem, isso eu já ouvi muitas vezes.
Do que fala esse outro Ulisses? Fala do refinamento dos sentidos, da abertura para outros sentidos que estão silenciados, do aprimoramento da sensibilidade e da entrega ao acontecimento. Fala da solidão e da comunhão com a natureza. Experiência unificadora à qual se entrega o bom artista. E o que propicia a solidão na Natureza? O apego a Deus, um deus sensual que é inteiramente natureza. Na solidão do artista, o som natural ruge, o vento conversa, as águas cantam. Estar em comunhão consigo parece ser, para esses artistas, a condição mesma da criação. Ouvir as águas cantarem é participar do frescor das águas, do ímpeto das águas, é beber na fonte da inspiração. Uma inspiração que não é apressada. Que sabe que o tempo é necessário. Tempo da arte. 

Muitos artistas falam do prazer que sentem no trabalho e da necessidade de continuar no dia seguinte e no outro. Mola, motor, engenho. Outros mostram que criação sobre criação também pede descanso. Nessas veredas também existem atalhos que, em vez de levarem adiante, fazem girar em círculos, cegam e impedem de perceber como seus os rastros reencontrados no caminho. É assim que alguns artistas se repetem, quando pensam que estão inventando. E, nesse caso, repetição é outra coisa.

Ulisses Pereira Chaves repetia-se em suas obras porque se entendia inteiramente como criação. “Sou Natureza!” E a cada vez percebia-se novamente singular, inteiro. Assim também se percebe Isabel Mendes da Cunha, nos seus 83 anos. Ou Rosa Gomes da Silva, aos 73. Ambas ativas, lançadas no fazer de cada dia. Já viram muita seca. E muitas águas passarem, sem parada. Labutaram e sofreram. Mas estão vivas, estão presentes. “Um dia podendo mais; um dia podendo mais pouco”, como diz Rosa. Circulam entre os jovens, ouvindo o seu entusiasmo de principiantes.



Elas não têm dúvidas que vida é repetição. Não se assustam quando as águas parecem ser as mesmas, pois sabem que elas tornam, elas revolvem os caminhos, elas pegam outros atalhos, a água vive e, solta na terra, só faz o que quer. Isabel e Rosa cumpriram o destino. Fizeram o que era preciso. Transmitiram seus conhecimentos e vivem na certeza de quem não reteve nada. Passaram adiante seu saber, sem recuar, sem fraquejar. Vida é passagem.

Da mesma forma, pode-se dizer que na obra de João Alves permanece algo de Maria Assunção. Maria Assunção veio antes e já se foi. Inventou figurinhas de barro cru de uma candura imensa: suas personagens sempre negras, de formas arredondadas, são afago na cabeça da criança, calor nas mãos de quem cozinha, trabalho constante, repetido, necessário, nos fios de algodão que são tecidos. Ao mesmo tempo doçura e dureza. Vida completamente em ação, mesmo quando suas pequenas mulheres estão ajoelhadas, em reza. Os personagens de João Alves destinam à vida um outro olhar. Austero, determinado, intenso, como se nada guardassem de subjetividade. Está tudo lá, inventário de gestos e afazeres: varrendo o chão de terra batida, limpando as vasilhas, lavando as roupas, alimentando a bicharada, numa ciranda contínua de trabalho sobre trabalho. 

Talvez, seja a intensidade do trabalho necessário – e feito –, um outro ponto de encontro entre arte e artesanato. Se modelar a cerâmica é destino, há que fazê-lo acontecer. E inventar, sem recuar do esforço e das tarefas necessárias. Inventar, repetir, refazer. Ser o outro sendo inteiramente si mesmo. É isso o que nos ensinam as mulheres e os homens, que dão seguimento à vida, com suas modelagens e esculturas, com sua coragem e ânimo. Ceramistas que, indiferentes aos nomes pelos quais são classificados, transitam na vida pelos caminhos da criação e redesenham, com seu trabalho, as fronteiras poéticas do Vale do Jequitinhonha.


Angela Mascelanié paulista, 56 anos. Vive e trabalha na cidade do Rio de Janeiro há 35 anos. Doutora em Antropologia Cultural, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Desde 2004 é Diretora do Museu Casa do Pontal. É autora dos livros O mundo da Arte Popular Brasileira (2002), e Caminhos da Arte Popular: o Vale do Jequitinhonha (2009). É curadora de exposições de arte em várias cidades do Brasil e do exterior.

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