Corpo & Neve (final)





Genebra, Suiça, 20??

A carta e a encomenda me alcançaram a dois dias do meu retorno ao Rio de Janeiro. Recebi-as quando voltava ao hotel, já quase três da madrugada –hora de um velho como eu estar dormindo, dormindo... Passei pela porta giratória e no saguão a voz esganiçada da atendente da noite soou como mais um devaneio etílico, girei sobre os calcanhares e ela já estendia a mão com o embrulho dizendo: a senhora esperou o quanto pode e isso foi por volta da uma da manhã.  Fiquei confuso. Tirei do bolso os óculos e sobre a luz pálida de uma arandela estilo art nouveau minha corrente sanguínea parou – eu teria de adiar minha volta para casa – Na minha surpresa, devo ter tido algo em português mesmo, pois a moça ficou ali – despachei-a com a mão e torto e vacilante segui para o meu quarto, já recuperava a sobriedade, a noite de excesso parecia agora um leve torpor por conta do que recebi... Era um torpor quase bom, eu sorria, olhei o pequeno pacote na minha mão mais uma vez..., minha vista embaçava, as minhas pernas balançavam, apertei com mais força a minha encomenda, sons guturais por dentro de mim, olhei para o lado – apenas eu ouvia aquele som – e eu não conseguia chegar até o elevador, suava... parei... sentia meus batimentos cardíacos por todo corpo. Com uma das mãos apoiei na parede e de repente, minha cabeça pendeu para frente, “fräulein, fräulein”, gritei pela mocinha do balcão, era tarde: vomitei sem saber o que vomitara, em seguida desabei... agarrado à carta e a encomenda.

Levantei sobressaltado. Dentro das possibilidades locomotoras de um velho desregrado como eu, até pareceu rápido. O luminoso do relógio mostrava que a noite daria lugar à manhã em breve; no céu suíço era difícil distinguir isto... No, Rio, a mesma hora, o céu se pintaria de pinceladas lilases e róseas, misturando aos restos quase negros da madrugada, com estrelas ainda visíveis por toda a parte. Aqui não. Tudo de súbito, guardado por detrás dos Alpes... eu precisava de um banho, ainda fedia a vômito e desconfia de mijo também – o pessoal do hotel não podiam ser tão solícitos assim. Eu só me recordo do teto, de como cheguei até o meu quarto e minha cama fofa de lençóis e edredons brancos, nem suposições tenho, mas isso também não importante; o importante estava ali, indecoroso, embrulhado num papel pardo e amarrado com barbante, no envelope, as iniciais bem fundas caligrafadas com a pressão do lápis: “W”. Eu precisava mesmo de um banho...

A água quente faz bem a esse velho, gosto dela bem quente, fumegante, abrindo os meus poros, deixando a minha pele enrugada esticada e avermelhada – meus banhos são quase castigos... por um momento ali, nem mais a água eu ouvi cair no meu corpo decadente, do banheiro eu não via, o pequeno pacote, com sua presença quase obscena, direcionava o meu olhar para fora e era como se tivesse sido transportado e assistia a mim mesmo e a Karl na neve, naquele Natal de 56...

"...Vamos chamar ajuda”, disse a Karl, eu não queria ir para o hospício. Ele foi. Tomei o caminho de volta para a cidade, a neve grudenta nos minhas botas colava – flosh, flosh – e dificultava a minha passagem. Assim com meu amigo, eu adorava a neve, mas depois daquele Natal jurei a mim mesmo que a evitaria ao máximo, que a deixaria para trás e talvez por isso tenha escolhido os trópicos para fazer a minha vida. Eu me esforçava pelo descampado, o vale branco, e mais uma vez a cerca. Olhei para trás e só vi os meus passos marcados nas elevações do terreno, ao longe o manicômio no alto do terreno, impassível ao que acontecia aqui fora, mas de onde Karl já deveria estar voltando com ajuda para o velho e eu com vontade de chorar diante de uma cerca! Passei pelo desvão e logo pisava nos paralelepípedos escorregadios de Herisau, corria com calcanhares nos glúteos e não via ninguém... acenei para alguns carros e me tomando por louco seguiram seu caminho. Segui e numa ruela que cortava a avenida, dois policiais quase dormiam em pé! Gritei, despertando-os da letargia de um trabalho natalino, vieram em minha direção e sem fôlego expliquei com ricos gestos o que tinha se passado. Um deles saiu correndo em direção ao descampado, o outro tirou o apito metálico e vez ecoar o silvo agudo, então a 100m um terceiro guarda surgiu de uma esquina e correu, também em nossa direção, algumas cabeças surgiram nas janelas, fui tomado pelo braço pelo guarda, repeti a minha história e não vi quando um jovem com bigodinho muito ralo, com talvez o dobro da minha idade, se juntou a nós e com sua câmera fotográfica pesada sobre o ombro, seguiu conosco correndo para a neve. Para minha surpresa, Karl ainda não regressara, o primeiro guarda virara o corpo, o jovem fotógrafo seguia batendo fotos de vários ângulos, o outro guarda ainda me detinha pelo braço, mas observando o trabalho dos outros – eu não queria olhar, virei para outra direção e então eu vi meu melhor amigo descendo as alamedas do Krombach também acompanhado – e um outro capítulo do nosso pesadelo começava: aquele neve era um inferno.

 Ao sair do banho, ainda me sentia cansado e a ressaca batia nervosa à porta, sobre a cômoda o pacote. Sentei na beira da cama, observei-o com detalhe, era um embrulho feito às pressas, girei-o na minha mão, lá fora os sinais de claridade anunciavam que sim, eu teria de encarar aquele embrulho, mas tinha receios dele. Evocado pela carta que também não abrira, eu também reconhecia a letra, afinal como não reconhecer a letra da minha primeira professora? A curva acentuada da primeira perna do dáblio, o “ezinho” que surgia da curva interna do traço contínuo para terminar a inicial de seu nome, denunciavam Wanda, a irmã mais velha de Karl... eu precisava de uma dose de tequila com muito limão e sal! O meu desejo era amassar aquela merda e no gesto esquecer o pacote quando deixasse o hotel. Porém, outras vezes estive no meu país, em Herisau inclusive, e nenhuma forma de contato fora feita ou tentada, por que agora? Suspeitava as razões. A carta dizia:

Olá, Peter.
Espero que os anos tenham sido mais justos e generosos com você do que foram com nosso amado Karl. O caminho por onde a vida de dois tão bons amigos os levaram pode ser turva e cruel, mas há sempre redenção. Espero que tenha encontrado a sua. Karl não poderá mais seguir em sua busca: morreu há alguns meses. Karl o tinha como amigo, mesmo com tudo que se passou entre vocês, ele o tinha com o único amigo de fato da sua existência na Terra... meu irmão, amado irmão, sofreu muito com a separação de vocês, mas não preciso te dizer isso: você também sofreu. Eu apenas queria dizer que ainda nos últimos dias dele, falava de você com saudade e ternura. E amaldiçoava aquele dia na neve – você pode imaginar o que se tornou o Natal para nós? Quando eu ia vista-lo, descontrolava-se ao lembrar disso... os dias com neve tornaram-se os piores para ele. Esse embrulho que acompanha esta carta foi encontrado junto do corpo dele, caído próximo a mesinha de cabeceira. Não sei ao certo porque faço isso, mas acho que esse caderno possa curar as coisas entre vocês e talvez dê um pouco de alento ao meu irmão querido.
W.


Li apenas uma vez a pequena carta... dei por mim que chorava.
Após a nossa briga, Karl e eu fomos expulsos do colégio, eu fiquei dois dias no hospital em observação, só me lembrava de bater muito nele e depois apagar sobre a neve. Depois fui saber que meu melhor amigo quase esmagara a minha têmpora com uma pedra... mas eu nunca o culpei por nada. Pelo contrário, tentei uma reaproximação, ia a sua casa, mas nunca podia me atender, ou “não estava” me dizia uma constrangida Wanda à porta. Uma vez o vi saindo do cinema e corri atrás dele: ele fugiu de mim. Desde então desisti e no dia em que meu pai disse que estávamos de mudança para Zurique eu tive a certeza de que nunca mais o veria e no dia de nossa ida, pela janela do trem o vi parado na plataforma (...acho), aquela foi a última vez que o vi e me admiro por ainda lembrar... e agora, isso, esse caderno embrulhado em papel barato. Evocando lembranças que não sei se quero recuperar... o barbante bem atado ao pacote chiou ao puxar do laço, o papel pardo bem dobrado revelando um desses cadernos de anotação preso por elástico na lateral. Era antigo e era gasto, folhas amareladas, amassadas, descolando, miolo estufado. Com as mãos tremendo, folhei. Nas primeiras páginas recortes de jornal daquela manhã de Natal, nossos nomes e caixa alta aqui e ali, repetidos em vários tamanhos e tipos, a foto de Walser na neve, adornando as páginas a caligrafia infantil de Karl subscrevendo as datas de entrada no caderno. Tíquetes de cinema e teatro, embalagens de chocolates, desenhos diversos, em especial flocos de neve. Anotações sobre o que Karl fazia: nossas brincadeiras, seus passeios, suas reclamações... pequenas transgressões como o primeiro cigarro e a primeira cerveja escondidos consumidos no porão. A descoberta do corpo das meninas. Eu continuei a investigar o caderno, as razões para recebê-lo ainda não claras – me parecia só mais um diário infantil. Então notei que os espaçamentos entre uma entrada e outra começaram a aumentar gradativamente, o número de desenhos superando a parte escrita, rasuras começaram a surgir, o nome de Walser e aquele Natal a se repetirem... bem como o meu nome. Eram anotações difusas e caóticas... de repente, entendi as razões de Wanda, aquele caderno feito diário era uma janela para a vida de meu amigo. Nele percebi que em determinado momento o que parecia escondido e curado pelo tempo se revelou e isso ficou claro numa imagem: eu e meu amigo, de pé na neve, no Natal de 1956. Era a foto do jovem fotógrafo, não era apenas uma foto, mas várias fotos iguais – nossos rostos rabiscados... Eu também tinha a minha foto e me lembro dos nossos semblantes: eu assustado, ele sorrindo. Decidi conversar com Wanda, afinal.

De trem, a caminho de Herisau, a excitação inicial deu lugar a reflexão: o que eu esperava encontrar lá? Redução, como Wanda sugeriria em sua carta? Solução para o insolúvel? Confesso que não sei ao certo, mas todos os caminhos passam por Walser e a manhã na neve. Encontrá-lo morto mudou nossas vidas. Karl e eu conhecíamos as histórias dos pacientes do hospício, uma deles era a de um velho que passeava a esmo pela cidade e que estava internado porque queria, mesmo já curado e sem sinais de loucura. Acreditávamos ser mais uma história de bicho-papão, afinal quem ficaria num hospício por vontade própria? O homem era Walser.  Era uma de suas excentricidades. Depois que me mudei de Herisau e não tendo muitos amigos e sem muito que fazer em Zurique, em uma tarde, fazendo compras com minha mãe vi um livro... Era de Walser –  exorcizei meu demônio lendo toda sua obra. E é uma obra fabulosa.  Não gosto de associações entre a vida e a obra de um autor, mas no caso do meu conterrâneo, e por estar ligado ele, pude entender um pouco mais do seu espírito arredio. Walser, em determinado momento, queria simplesmente desaparecer, anular-se por completo e em seus livros seus personagens desejavam o mesmo: passar incógnito. Da janela, vendo a paisagem desfocada pela velocidade fiquei pensando na tentativa de isolamento de Walser... era irônico, pois de certa forma ele conseguira em vida, mas dois garotos acharam seu corpo morto na neve e mudaram tudo – vida prosaica, morte excêntrica. “E, talvez, como um justiçamento poético, Peter e eu, tenhamos nos tornado os herdeiros de Robert Walser – cada um a seu modo – ele desaparecendo de Herisau e eu em Herisau. Cada vez mais o convívio com as pessoas me desagrada e pela primeira vez compreendo Robert... Por que me dirigem olhares de soslaio? Por que seguem meus passos quando caminho? Por que falam de mim quando não percebo. Pessoas são terríveis.” Talvez seja a última passagem com algum sentido no diário de Karl, confesso que em parte concordo com ela...

Não foram choque nem surpresa, mas ao desembarcar em Herisau percebi que era outro lugar daquele que deixei – foi evidência. Uma cidade nova e desconhecida –, o que só facilitava o meu desejo de voltar para o Rio o mais rápido possível, mas tomei como missão aquela última visita. O meu trânsito pela cidade da minha infância não teve nostalgia, reminiscências, saudosismo barato, eu me sentia um turista estranho pelas ruas da minha cidade. O taxista me tratou assim quando me levou ao endereço de Wanda, a casa em que ela sempre viveu. Ao abrir da porta foi surpreendido, como ela estava bem conservada! E Wanda tinha o dobro da minha idade! Ela me convidou a entrar com um sorriso e pela primeira vez me sentia confortável em Herisau, a casa pouco mudara em mais de ??? anos. A nossa conversa foi breve, regada a chá e a cada frase eu desejava mais e mais uma dose de cachaça... Wanda me contou sobre Karl e de como, pouco a pouco, tornou-se um misantropo e posteriormente diagnosticado como esquizofrênico. Em suas crises, queimava fotos suas ou em que nelas estivesse, por mais de uma vez rasgou seus documentos e exigia ser chamado por outros nomes, por mais de dois anos adotou o nome de “doutor Vila-Matas” e só assim atendia, quando lhe falavam. Chegou-se a controlar o seu estado com remédios, mas, mais uma vez o Natal de 56 estava no seu caminho. A redescoberta da importância da obra walseriana apontou os holofotes a tudo que circunscrevia o escritor – meu amigo recusou a visita de um escritor catalão que pesquisava para um livro, agrediu um jovem documentarista e outras ocorrências do gênero. O desejo de sumir dirigiu-se a si mesmo e, após a viuvez, Wanda levou Karl para morar com ela – antes passara por várias instituições mentais –, como se assim dificultasse as recorrentes tentativas do “suicídio exemplar”, como escrevera no seu caderno. Um dia conseguiu.

Subia mais uma vez aquele campos, sem a neve era um lugar bonito, era outono e tudo era castanho. Não havia mais cercas, mas eu tinha a certeza exata da sua localização e o desvão por onde passamos... no alto o Krombach, o hospício, agora abandonado; lá o corpo de Karl descansou, depois de desapareceu por duas semanas o zelador que visitava esporadicamente o lugar encontrou o meu amigo enforcado pelo próprio cinto, atado a uma das grades dos quartos-cela do lugar... não deveria ser uma cena bonita. Além do corpo, o zelador só encontrou mais um coisa: o caderno de Karl e um bilhete para Wanda:

“Entregue a ele.
Ele saberá o que fazer.”

“Ele” era eu, e eu era “Ele” naquele momento de pé no campo. Abri a minha carteira, de dentro dela tirei um papel dobrado em quatro: era a minha cópia daquela foto tirada ali mesmo. Desdobrei. Abri o caderno de Karl, folheei mais algumas vezes até encontrar as fotos rasuradas, pus a minha lá, numa das últimas páginas, dos trechos escritos pelo meu amigo, uma saltou os olhos:

“Não gosto de crer que tenha sido pela insatisfação pueril provocada pelos nossos presentes de Natal, que a minha vida e a de Peter tenham encontrado a morte de Walser. Prefiro acreditar que tenha sido mais um escárnio do destino com a patética condição humana. Só assim fará sentido a ilógica razão do meu gesto.”
Herisau, Natal de 20??

Senti um vento frio no meu silêncio e das montanhas, era a anunciação do inverno. Fechei o caderno de Karl. De joelhos, revolvi com as mãos a terra úmida e enterrei tudo ali. Até hoje compreendo pouco o desenrolar dos fatos daquela manhã nas nossas vidas. E não desprezo sua influência avassaladora em mim ou o quanto vital em meu amigo. Sinto-me neutro às decisões de Karl sobre lidar com as dele, não farei julgamentos aqui sobre sua morte a de Walser ou de qualquer um. E como a posição política de meu país, sou nulo, neutro e branco... Tal qual a neve.
***

Leia a 1ª parte aqui.


Mauro Siqueira é flamenguista e escorpiano; fomentador de redes sociais e não sai do Twitter, é ficcionista, leitor foraz, autor do livro de contos De vermes e outros animais rastejantes. Participa de vários projetos online e tem contos aqui e ali pela rede. Colabora com o blog da Livraria Blooks e é editor da Revista RapaDura.

0 comentários :

Postar um comentário

 

.newsletter

Cadastre-se e receba nossas atualizações diretamente em seu e-mail:

.arquivos

.facebook

.sobre

Criada com o desejo de debater temas únicos com olhares de várias perspectivas, artísticas – ou não (como diria Caê); a Revista Rapadura nasce para fomentar, no espaço livre e caótico da internet, o diálogo, a reflexão e o prazer através de matérias aglutinadas por sua natureza colaborativa.

Uma revista feita por pessoas de diferentes ideias, idades, idiossincrasias, lugares, opiniões, paladares.
Lembre-se: é doce, mas não é mole não.

.
.