O Passeio Filosófico de Robert Walser



Por que Robert Walser foi e continua a ser tão importante para mim? Creio ver em sua obra algo parecido com uma experiência, uma experiência especial, isto é, não apenas uma experiência comum. Não só na ciência, mas também na literatura e na filosofia existem experimentos. Naturalmente, estas experiências têm pouco a ver com experiências científicas, no que diz respeito a viabilidade e a precisão do teste de uma hipótese, mas para questionar a condição humana.

A questão é a existência humana fazer uma transformação antropológica. E quem realizou essas experiências se aventurou, além da verdade de suas declarações, mas também na maneira de sua existência. Isso requer um tipo de mutação antropológica, na forma dos primatas ou na transformação de répteis, antes de se transformar em aves. Que tipo de transformação ocorre em Walser?

Walser descreve da mesma maneira que Kafka dá lugar para aqueles que deixaram de ser humanos, mas continuaram a pertencer ao mundo divino ou animal. O experimento que exerce Walser é tão importante e inovador como o experimento que Heidegger leva a cabo em Ser e Tempo, tanto no campo da psicossomática é substituído por um vácuo de ser insignificante. Isto não é diferente da tentativa de retratar a si mesmo como possível através do que é impossível. Assim, Walser, como Kafka, é um teólogo, se entendermos a teologia como um lugar onde os novos valores são postos a prova.

Em meu livro, A Comunidade que Vem, comparei as figuras de Walser com as criaturas que vivem no limbo. Segundo os teólogos, a punição de crianças não batizadas que perecem sem culpa alguma, não será o doloroso castigo do inferno, mas a privação da graça de Deus. Como estas criaturas não têm acesso ao conhecimento sobrenatural, nunca sabem terem sido privados de um bem supremo. O pior dos castigos, ou seja, a retração antes da graça de Deus, é a forma de mal que vive entre aqueles cuja felicidade é o estado natural do limbo.

A felicidade do limbo é o segredo das criaturas de Walser. Eles vivem fora da maldição e da salvação. Ignoram Deus e o homem, a lei e ao destino. Permanecem para sempre perdidos no abandono de Deus. Ainda quero apontar um outro exemplo: pensemos nos personagens de Walser em seu romance O Assistente (1907). Em Kafka, os assistentes são seres mediadores entre anjos e burocratas. A angeologia e a burocracia em Kafka são uma mesma coisa. Em Walser, no entanto, esses agentes cobram um papel messiânico.

O grande pensador Sufi Ibn al-Arab, recorre a figuras análogas que ele chama de agentes do Messias ou "Wazara" nome árabe, plural de Wazir. Os Wazara são agentes que habitam no tempo-agora, característica secular da era messiânica que forma a parte do dia que resta. Desta forma, são tradutores de linguagem divina para a língua dos humanos. Estranhas criaturas que passam despercebidos entre os árabes.

A idéia de que o Reino está presente no tempo profano, apenas em formas discretas, evidencia que o estado final se esconde no que agora só parece usual e risível. Este profundo tema messiânico é o que atravessa os ensinamentos teológicos de Walser.

Os burocratas de Walser parecem ser insuficientes: empregados que executam um trabalho desnecessário. Dedicam-se ao estudo e fazem isso para aprender alguma coisa. E por que deveriam participar de um mundo sensato, se na realidade é na loucura, onde encontram a verdade?

Melhor dar um passeio.
Nas obras de Spinoza só existe um lugar onde se faz uso de sefarditas*. Trata-se de uma passagem onde Spinoza explica a importância da causa imanente, isto é, de uma ação própria do mesmo agente, onde o ativo e o passivo coincide com a mesma pessoa. Para ilustrar este importante conceito Spinoza é forçado a usar sua língua materna. Caminhando, na língua judaico-espanhola, andando a pé, assim está o ser indeterminado de Robert Walser no  lugar entre ação e omissão, entre passividade e atividade, entre o ser e o nada. Este passeio é o paradigma messiânico que as criaturas de Walser legaram à humanidade.


*termo utilizado para referir aos descendentes de judeus originários de Portugal, Espanha, etc.


Fotos e tradução para o português por Christian Fischgold, editor da Revista RapaDura.


Giorgio AgambenFilósofo italiano autor de várias obras que percorrem temas que vão da estética à política. O texto acima foi traduzido originalmente para o espanhol por Gerardo Muñoz e publicado na revista Mikrogramme

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