Cartas sobre Cezanne

O livro Cartas sobre Cézanne de Rainer Maria Rilke se inscreve entre o melhor da crítica de arte produzida no século XX. Mas o que torna esse livro precioso não é a sua contribuição enquanto crítica de arte nem em particular a sua orientação crítica para a contemplação das obras do pintor. A sua importância inestimável se confirma na reflexão experimentada pelo poeta sobre o sentido próprio da arte e do fazer artístico, em conseqüência de suas constantes visitas ao Salon de 1907.

O livro é a imagem do curso vivo de um rio ou de um sangue que forma e vislumbra às suas paisagens, suas sensações na medida mesma da insistência do seu fluxo. Rilke não erige teorias, esboça, numa luta intestina com a palavra, o aprendizado do que ele supõe ser o objetivo, mas que na verdade é antes o misterioso aprendizado da realidade do real – aprendizado disto que permite as coisas virem à luz no máximo de sua clareza, afirmando-se enquanto aquilo que elas são de mais próprio, aderindo-se a elas de fora e fazendo-nos crer que as refletem de dentro. Porque Rilke cria encontrar na realidade perquirida o mesmo teor do real a ser aclarado, supunha ser tal realidade apenas enquanto relações de forças e de valores (graus de grandezas) naturais, portanto inerentes ao real.

Por sorte o seu tácito saber de poeta não o deixou postar-se frente às criações de Cézanne com o olhar ávido de exatidão de um cientista, porque seria deste modo que ele as contemplaria se alcançasse realizar o que supunha ser a melhor postura, como o deixa entender quando revela o sentimento de impotência frente ao seu único recurso apreensivo – a simples palavra. Num certo momento ele afirma acerca da incerteza de sua possibilidade plena de compreensão do quadro Mulher na poltrona vermelha: “ (...) mais do que nunca as palavras me parecem inadequadas. Ainda assim teria de existir a possibilidade de servir-se delas à força, se conseguíssemos apenas contemplar o quadro como natureza: então seria possível expressá-lo de algum modo como um ente”.

Se frente à obra de Cézanne, Rilke, orientado pelo seu próprio Ser poeta,  escapa ao risco de uma contemplação metafísica, constatamos nesse seu esboço do aprendizado da arte do pintor que não raro o poeta tartamudeia quando fala acerca da existência pessoal deste. Deu-se que no tocante a existência, Rilke a tomou realmente como um ente natural. E o que poderia ser uma mostra da complexidade do existir do homem-pintor fica limitado a uma descrição ambígua de um ente subsistente (descrito na figura de um homem frágil, intolerante, por vezes passivo, mas sempre atormentado) em permanente e penosa controvérsia com um mundo social incompreensível e alheio. 

O que Rilke não sabia é que a linguagem que o conduzia e lhe aclarava o “objeto” tinha as suas palavras embaçadas pela tradição e era já apenas apta à mera representação do existir humano e da arte, mas nunca propriamente à meditação acerca destes. Daí que também Cézanne mal consiga balbuciar ao tentar esclarecer sobre o seu aprendizado das cores e da relação “fervorosa” entretida entre elas. Também Cézanne, mesmo sem atribuir caráter essencial à natureza aparente, movimenta-se no âmbito da subjetividade e postula a natureza, pensada em termos de mundo, enquanto sujeito das idéias, pois afirma: “A natureza não está na superfície mais na profundidade. As cores são a expressão dessa profundidade na superfície. Surgem das raízes do mundo. São sua vida, a vida das idéias”. – A estrutura sujeito X objeto era ainda o âmbito imposto ao pensamento, e até então ninguém havia podido pressentir que a possibilidade de manifestação do ente estava enraizada na estrutura ser-no-mundo (como enfim o compreendeu Heidegger); que não fazia diferença pensar a natureza a partir de sua aparição imediata ou de sua estrutura formal, sendo ela concedida e posta à disposição, inclusive para a arte, pelo pensamento físico-matemático, porque fosse de um ponto de partida ou de outro não se percorreria o caminho propriamente meditativo da essência do real. Por isto, tratando-se do existir humano, da cor e da relação entre as cores; tratando-se de matérias tão voláteis e relacionadas entre si de modo tão extraordinário, o desacerto entre a palavra e a coisa a ser pensada seria sempre inevitável e, no entanto, para ambos e, mais fundamentalmente para o poeta, que extraia o seu saber da matéria própria da linguagem – desconcertante. Mas, quem, naquela época, apesar do acontecimento Nietzsche, poderia desconfiar que o problema de tal desacerto não se enraizava na precariedade das palavras, mas antes num certo desdobramento histórico da linguagem, que vinha reduzindo-a ao papel único e exclusivo de mera representante da essência do real, esta pensada como mera possibilidade lógica?
Para tecer as considerações acerca da pessoa de Cézanne, Rilke acedeu partir das considerações do pintor Émile Bernard sobre a personalidade daquele, e a partir delas associou de modo bastante lógico todas as manifestações de descontentamento do pintor para corroborar com a imagem de um homem emocionalmente frágil, e inconformado. Se o poeta tivesse tomado como ponto de partida a própria correspondência de Cézanne, a qual mostra ter tido acesso nas Cartas..., entenderia as obstinações, as recusas, as indignações deste muito antes como uma conseqüência muito coerente de sua própria concepção de mundo e de arte, que derivava diretamente da sua compreensão de Verdade. Teria compreendido mais radicalmente que Cézanne (exatamente como no paradoxo de Alice, exposto por Deleuze) se tornava “inepto” (para o funcionamento impessoal do mundo público) na mesma medida em que se tornava apto (para a permanência própria no mundo verdadeiro do trabalho) – daí a sua necessidade legítima de solidão. E diante desta evidência provavelmente perguntar-se-ia: quem era de fato fraco e intolerante, Cézanne ou os homens públicos à sua volta com seus compromissos, sua decadência, suas quizilas, seus pareceres sempre levianos e mesquinhos acerca de tudo que escapa aos seus interesses e vantagens imediatos? E teria que concluí-lo: que homem fraco poderia suportar tanta insatisfação consigo mesmo por respeito aos seus motivos e sustentar-se lutando para corresponder a uma Excelência que via sempre distante demais do seu momento presente, sobretudo quando experimentando o gosto acre de uma velhice enferma?


 Com efeito, Rilke constata e apresenta um Cézanne pintor forte, resoluto, e muito consciente de si mesmo frente à sua tarefa, mas o supõe apenas como o artista. Acontece que não há na essência distinção entre o artista e o homem, como não pode haver entre ser e pensar; o que há é uma distinção entre o homem de excelência e os homens sem excelência – daí que haja muitos artistas e ao mesmo tempo muito poucos artistas. Por outro lado, a fraqueza e a força não podem ser tomadas como medidas em si para avaliar a qualidade de uma personalidade; pois, se inseridas no mundo de sentido próprio em que se constitui um caráter humano a ser considerado, muitas vezes elas apresentarão um significado inverso àquele que lhes seria atribuído fora desse mundo.  De certa forma o poeta faz esse aprendizado, ainda que sem compreendê-lo muito bem, quando percebe que aprendendo sobre os progressos de Cézanne começa a aprender sobre a sua própria arte e sobre a sua própria pessoa. Ele compreendeu que estava a se transformar no curso de suas repetidas idas ao Salon, porque na medida em que ia apreendendo o que Cézanne aspirava por respeito à sua pintura apreendia o que ele próprio tinha para aspirar por respeito à sua poesia: a superação de qualquer predileção, qualquer inclinação, qualquer capricho de escolha, em vista da possibilidade necessária de “consentir e aplaudir” as resoluções livres desdobradas pela vida e manifestas através da arte à revelia de qualquer pretenso sujeito de vontade no seio do real.  Faltou-lhe apenas projetar a grandeza encontrada no artista sobre o homem Cézanne, isto não para favorecer a nossa compreensão da pessoa do pintor, que bem podemos obtê-la através de sua maravilhosa apresentação da concepção de arte do artista e de sua obra, mas para si mesmo que aprendeu algo de tal junção sem chegar a saber que ali o aprendeu. 



Francisca Rutgliano é professora de filosofia doutorada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

2 comentários :

  1. A leitura da Prof. Francisca me deixou instigada, e vou procurar por esse livro, que ainda não li. Legal o espaço que a revista deu para o artigo. =)

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  2. @Bruna Maria Legal,
    Bruna. E fique à vontade para participar como colaboradora também.

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