Três xícaras de inspiração




Para Francine Ramos, que teve a ideia-raiz 


Sylvia concorda com a cabeça e sorri. Seu silêncio forma uma cova onde se deita o grito do bule. O chá está pronto. A pequena cozinha amarela, quente e iluminada por uma poça solar entre a mesa e a porta dos fundos, não mais recende a limões e mel, embora o vapor do chá borrife o ar com laços floridos e doces, uma mistura de pétalas e caules, folhas quebradas e alguma casca irreconhecível. Sylvia demora a levantar-se, procurando no olhar distante da outra a concha gelada e cavernosa de seu próximo pensamento. Virginia balança para frente, sorri com timidez e indica o bule atrás da amiga. Algo acorda dentro dela, mais intenso e quente do que o apito da louça de ágata. O chá é derramado em três xícaras, a terceira sem pires parece oferecida a um fantasma. Virginia esfria o seu mexendo a colher na forma de um oito, um infinito que faz balançar o líquido cor de âmbar. Sylvia imediatamente franze o cenho, com medo, imaginando que teria sido melhor servir a bebida gelada num dos altos copos que nunca tirava do armário. O calor do dia, da primavera brotando das cores e dos cantos iluminados, parece aumentar o desconforto do chá. Mas ambas tomam um primeiro gole; olham desoladas para a terceira xícara, depois para o reflexo uma da outra nos olhos escuros que fazem delas mulheres observadoras do mundo e suas sombras. 

― Até mesmo dessa tímida fumaça ― continua Virginia ― podemos extrair a ideia para um novo conto. A simplicidade das coisas, os pequenos detalhes, tudo isso me assombra de forma deliciosa. Estar nesta cozinha, olhando para aquelas toalhas brancas sob o sol, estendidas na janela, me inspira. 

Sylvia olha para as suas antigas toalhas de linho. O contorno azul está gasto, quase acinzentando, com aviltantes furos pelos quais atravessa a luz, formando bolinhas amarelas na pia. Pensa no chá que poderia ser gelado, nas toalhas que poderia ter trocado. Essa situação, o súbito enjoo diante dos pequenos detalhes – errados – e o calor anogueirado dos olhos de Virginia de repente também se transformam em inspiração. 

― O que mais inspira você? ― pergunta Sylvia deslizando o dedo indicador pela borda da xícara; sua nuca sua, seus olhos saltam da louça para os cabelos encanecidos da amiga. ― Digo, de detalhes que a maioria das pessoas não vê. 

Virginia esboça uma leve expressão de ironia, como se achasse a pergunta engraçada. Entretanto, não é engraçada, não é por isso que ela sorri de leve, mas porque pensa em conversar sobre inspiração com uma poeta que também mergulha na força dos detalhes, sabendo que eles podem significar mais como todo do que como parte. 

― Antes me diga você ― desafia Virginia bebericando outro gole do chá. Ele desce quente como uma lambida ígnea do inferno, mas ela não se incomoda. A conversa deixa tudo melhor, embora deseje simplesmente um copo de água ao invés daquele pedaço de gengibre preso no fundo da xícara. 

― Não sei o que mais me inspira, mas sou imediatamente assaltada pelo desejo de escrever sobre o contorno escurecido de uma lápide, a atmosfera encarnada de um crepúsculo, os olhos azougados da morte. Também me fascinam as estações, as dores do platonismo, o amor que se rompe numa tarde ensolarada como esta, o ódio que se guarda diante de um espelho levemente desgastado, as tulipas e os olmos, a lua e o teixo... 

Ela para e suspira, envergonhada e ao mesmo tempo envaidecida com sua quantidade de exemplos. Quer deixar Virginia sozinha, correr para sua máquina de escrever e espancar outro poema que será tantas vezes rabiscado e confundido com sua ideia inicial de bom poema. Provavelmente rasgará as folhas e pedirá que Virginia vá embora porque precisa fazer outro bolo enquanto o marido não chega. 

― A inspiração... ― Virginia se detém sobre a palavra que flutua entre as duas. Se alguém conseguir defini-la, seu caldo pingará nos chás e beberão da fonte. Mas a palavra pousa na mesa, ainda entre ambas, e abre um silêncio onde seu enigma se encerra. 

Um pássaro bica o vidro da janela e as duas se olham entre o susto e a alegria da surpresa. Seu bico reflete o sol, que perfura o teto da cozinha como uma pepita de ouro. 

― Se o bico dos pássaros fosse feito de prata ― diz Virginia empurrando a cadeira. Ela levanta como que para fugir do calor do chá, vê o ponteiro do relógio marcar quatro horas e um minuto e chega perto da pia para afastar a cortina, de modo que o pássaro apareça. Ele poderia entrar porque uma das folhas está aberta. Mas quando vê Virginia, bica o vidro uma segunda vez e desaparece num voo agitado. 

― Se as penas dos pássaros fossem feitas de prata, ou de espelho ― arrisca Sylvia num devaneio que começa a embriagá-la. ― Estariam extintos. As mulheres enfunadas em suas peles com certeza usariam joias feitas com o metal e se orgulhariam cruelmente de usar o tesouro que um dia também cantou. 

― Ou ainda mais simples: se o pássaro simplesmente entrasse ― continua Virginia voltando para sua cadeira e agora fazendo gestos com as mãos enquanto seu chá esfria, ― se ele simplesmente pousasse sobre a mesa e bebesse da terceira xícara como o convidado que esperamos. A razão pela qual um pássaro vem tomar chá e discutir poesia com duas mulheres alucinadas não é explicada! 

Sylvia ri, embora olhe com tristeza para aquela xícara. Talvez o pássaro não precisasse mesmo de um pires. Ou do chá. Talvez precisasse bicar um pedaço de bolo de laranja, não uma superfície de vidro. 

― Mas você ainda não respondeu o que mais lhe inspira, Virginia. 

― Boas conversas como esta; o dourado reluzente dos cabelos de crianças brincando ao sol; os círculos concêntricos de chuva numa poça que lembra um lago em miniatura; uma mancha na parede; o verde e o azul de um lustre de cristal; os tons caliginosos de uma onda que se curva para levar outro corpo ou outro barco até o coração do mar; o movimento do pé de quem cruza as pernas; a existência de uma senhora durante um dia; as botas de quem já morreu... 

Virginia empurra sua xícara de chá ao mesmo tempo em que uma lágrima pinga na mesa. Sylvia vê a lágrima desabrochar uma flor úmida na toalha e também decide não continuar com o chá. Nem pensar nas ideias que a conversa trouxera. Uma mancha na parede, um bico no vidro, uma terceira xícara, uma mancha na toalha. Um coração em dúvida. Mãos e nucas molhadas de arte. 

As duas se erguem e se despedem. À porta da cozinha, com uma mão no chapéu e outra na bengala, Virginia diz: 

― Vou procurar novas ideias no rio. E você? Vai ficar bem? 

Sylvia assente com a cabeça e abre a porta do forno: 

― Vou fazer um bolo.



Alex Sens é escritor. Também escreve resenhas para as revistas Bula, Acesso Total, para o Jornal Opção e colabora mensalmente com o blog da editora Ateliê Editorial. Tem dez cachorros, prefere os dias cinzentos e frios, não come carne, mas toma litros de chá e café, e mantém o blog "Instantes Narrativos". No Twitter é @alexsens. Contato: sensalex@gmail.com.

0 comentários :

Postar um comentário

 

.newsletter

Cadastre-se e receba nossas atualizações diretamente em seu e-mail:

.arquivos

.facebook

.sobre

Criada com o desejo de debater temas únicos com olhares de várias perspectivas, artísticas – ou não (como diria Caê); a Revista Rapadura nasce para fomentar, no espaço livre e caótico da internet, o diálogo, a reflexão e o prazer através de matérias aglutinadas por sua natureza colaborativa.

Uma revista feita por pessoas de diferentes ideias, idades, idiossincrasias, lugares, opiniões, paladares.
Lembre-se: é doce, mas não é mole não.

.
.