Rio-São Paulo: quando a fronteira sou eu

Quais são suas impressões da sua cidade natal, se fora dela? Você tolera ouvir tudo? 

 por gisele almérida




Fronteiras. Os limites do meu país, a América do Sul, linhas pontilhadas em preto num planisfério, continentes, cores se alternando em formas, curvas, linhas estranhas, meridianos... — talvez o que a maioria das pessoas pense ao se verem confrontadas com esse conceito de fronteiras. Tendemos a pensar macro, e não ignoro outros limites a que estamos sujeitos — tendo ao micro. Quando convidada a colaborar, pensei em escrever sobre a minha ascendência hispano-árabe, ou sobre meu antigo trabalho em que me via no meio do alto-mar, em uma plataforma de petróleo e até rascunhei algo mais íntimo como as fronteiras/limites do meu corpo. Porém, o significante “mapa” não saía da minha cabeça (e das minhas lembranças).

À necessidade de saber onde estar e até aonde poderia se ir sem se perder, os mapas foram importantíssimos para a humanidade. Das rudimentares tentativas pré-históricas, antes mesmo da escrita!, às Grandes Navegações até hoje, em que são reinventados por grandes sites de busca e redes sociais — a geolocalização é o must in da estação —, devo dizer que gosto de tudo isso, mas não é para onde a bússola desse texto aponta. Mas apenas para deixar clara a importância de um mapa e sim, como já mencionado, o mapa das minhas lembranças, onde não há escalas, mensurações apuradas ou fidedignas, mas é lá que está o caminho... Hoje não moro mais na cidade em que nasci, moro em São Paulo, mas já morei fora também e guardo um pouco de cada cidade e seus contornos em mim, mas escolhi Sampa para meu lar e aos poucos vou construindo um outro mapa afetivo; como aquele que guardo do Rio de Janeiro, e que a cada retorno, ao mesmo tempo é outra e é a mesma cidade maravilhosa...

Eu seguia para uma aula particular não muito longe de onde moro, eu poderia ir a pé, ônibus, trem ou metrô, não carecia de opções, mas ameaçava chover e (desculpem a futilidade) não queria arriscar meu sapato de camurça: tomei um táxi. Decisão acertada, cinco minutos depois tudo era cinza e molhado; o taxista ouvia uma dessas estações só de notícias e eu, no banco de trás, dividia meu tempo entre e-mails informando que chegaria atrasada e tuites de pseudo frases de efeito— minhas ou de autores mortos. O som não estava alto, mas o comentário do locutor chamou a minha atenção: “...apaziguado o conflito entre moradores e militares do Exército no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O governo do Rio e suas lideranças de Segurança começam a semana com outra crise envolvendo a política de pacificação de favelas...”. E o taxista, por vez emendou, me trazendo de vez para a realidade: “É, o Rio esta zoado, não da mais para morar naquilo lá. É uma cidade sem lei e sem fronteiras, um faroeste.” Eu apenas concordei com um quase sim e me pus a pensar eu mesma sobre “uma cidade sem lei e sem fronteiras”. Um grande engano. Fronteiras são só consolidadas ou impostas por leis declaradas (ou tácitas), pelo poder de direito (ou não). Você não sobe um morro no Rio por apenas querer subir — não é assim que funciona. E uma comunidade não desce às ruas para um pequeno levante, com pneus de barricadas e panelas e pedras, da mesma forma — não é assim que funciona. Qual o sistema interno de funcionamento dos dois casos? Desconheço, e não obedeço a nenhuma lei do silêncio para não dizer, apenas é o que sinto, como muitos outros — e eis mais um limite... apenas vou até aí.

Lembro-me de quando era pequena e que aos poucos fui conquistando a minha liberdade e que esta era pautada pelos avanços do território conhecido e mais próximo: o meu bairro; mediado pela minha idade (cronológica e mental): o direito de brincar só em casa, depois no play, de atravessar uma rua sozinha, ou de ir e voltar da escola sozinha, o primeiro ônibus, até conhecer o bairro de subúrbio em que cresci de cabo a rabo. Hoje, quando retorno ao Rio, não encontro mais crianças com esses dilemas, pelo contrário, as vejo cada vez mais tolhidas de seu ir-e-vir, um preço que elas pagam por viverem numa cidade que cria mais e mais fronteiras (in)visíveis, ideológicas e sociais a cada dia, mas que não é a única — em São Paulo, Buenos Aires, Barcelona, Chicago —, os exemplos são vários e que borram cada vez mais os mapas do mundo com suas razões intrínsecas e particularidades extremamente diversas.

No Rio, o que se esquece ou que não ser quer lembrar é que foi criado paulatinamente um abismo econômico sócio-cultural na cidade e que fica mais evidente pela geografia da cidade. Não sou cientista política quiçá geógrafa, mas a percepção que construí da minha cidade natal é que ela é uma fortificação natural — protegida pelo mar e pelas montanhas — e que cresceu apertada entre os dois, tendo de se adequar a cada morro, rio ou outro acidente natural qualquer no se caminho de crescimento — a cidade é apertada na cintura pela sua beleza — e o mesmo é válido para as pessoas, cada um sempre deu um jeitinho de se entender bem. As questões históricas e o progresso foram aos poucos fazendo o resto... E a já clichê imagem de paraíso e inferno da cidade se cristalizou, com trilha sonora, filmes, novelas... Não nego que os índices de violência da cidade sejam alarmantes, mas também não duvido que haja uma supervalorização desses mesmos índices, além do foco natural de atenção que a cidade recebe daqui e do mundo todo e que ficará mais evidente com a proximidade dos dois maiores megaeventos esportivos que já recebeu — é o que creio, mas como disse, não sou uma dessas especialistas que dão entrevista no jornaleco da hora do almoço, cuspindo termos e teorias, sou apenas uma carioca que agora olha de fora a sua cidade, mas que ainda se sente dentro a ponto de dizer para o motorista do táxi, ao sair do carro, que cidade sem lei e sem fronteira é o cu dele.


Gisele Almérida é professora particular, foi mochileira e trabalhava embarcada num petroleiro; drama queen e nerd de óculos e tatuada de tailleur. Lê só que lhe convém não o que o cânone impõe, gosta dos seus traços árabes

 

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