Saudade na fronteira ou a fronteira da saudade

Ter que sair da sua terra natal para poder ter uma melhor chance de qualidade de ensino, sentir-se outro na terra alheia; voltar para casa e sentir-se outro por ser tocado por outra cultura. E a saudade? O que fazer com ela?

— por Daniele Ellery Mourão


Entre os anos 2001 e 2003 convivi e fiz pesquisas em Fortaleza (MOURÃO, 2004) com um grupo de estudantes guineenses e cabo-verdianos de graduação inscritos em diversos cursos da Universidade Federal do Ceará (UFC). Posteriormente, em 2004, realizei outra pesquisa (MOURÃO, 2009) em Cabo Verde e Guiné-Bissau com ex-estudantes que já haviam retornado graduados aos seus países. Eles vinham para o Brasil por meio do Programa de Estudante Convênio de Graduação (PEC-G), um acordo de cooperação firmado entre o Brasil e países do continente africano de língua oficial portuguesa (PALOP) e da América Latina. 

Inabitado até a chegada dos portugueses em 1460, Cabo Verde é um país formado por dez ilhas. É marcado por uma intensa mobilidade humana, seja pelos processos migratórios internos (entre as próprias ilhas) e externos (pela permanência de um enorme contingente de sua população emigrada no exterior – privilegiadamente em países europeus e nos Estados Unidos[1]), seja pelos deslocamentos transitórios de estudantes. A Partida é um horizonte sempre possível, e está fortemente presente na música e na poesia cabo-verdiana, assim como o sentimento da saudade por aqueles que partem. Em Guiné-Bissau a partida também se faz fortemente presente pela “diáspora negra”, durante o tráfico de escravos, pelos intensos fluxos e refluxos migratórios entre países vizinhos durante o período colonial, assim como também pelos deslocamentos estudantis. 

As ilhas de Cabo Verde cumpriram um importante papel como entreposto comercial e escravagista, servindo de porta de entrada dos Portugueses em direção ao continente africano, com o triângulo Europa, África e Américas. Por serem países vizinhos, ambos situados na costa ocidental da África, houve um intenso fluxo de guineenses que foram levados pelos portugueses como escravos para as ilhas cabo-verdianas. Da grande mistura, especialmente entre guineenses e portugueses, nasce o povo cabo-verdiano que, segundo CORREA E SILVA (2004) e VALE DE ALMEIDA (2004a) transformou o “processo de crioulização” – escravos nascidos nas colônias, fruto de miscigenação entre nativos de diversos países e colonizadores – em “projeto de crioulidade”. 

Cabo Verde foi porta de entrada da Europa em direção ao continente africano e às Américas. A Europa uma porta de saída para cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, angolanos para o mundo, especialmente no que se refere à formação acadêmica das elites. Pois, durante a colonização os estudantes guineenses e cabo-verdianos faziam, privilegiadamente, seus cursos superiores em Portugal, sendo somente depois da independência, respectivamente, a 24 de setembro de 1974 e a cinco de julho de 1975, que os países passariam a estabelecer convênios de graduação com diversos países como com a antiga União Soviética, Cuba, Estados Unidos, Brasil, entre outros. 

Para os estudantes, estudar fora é vivido como um destino: “sair, formar e voltar” – para retribuir o aprendizado adquirido. Nos relatos, muitos estudantes disseram que desde a infância são socializados tendo em mente que um dia terão que sair, tendo a formação superior como um projeto de vida. Esse discurso, construído socialmente e naturalizado entre eles, incorpora os discursos nacionalistas que, historicamente, projetaram na educação uma alternativa para o desenvolvimento da nação e consequentemente do indivíduo. 

Dessa forma, o projeto de vida é um compromisso coletivo, uma vez que a principal exigência do convênio PEC-G é que regressem e retribuam o aprendizado. No entanto, isso vai depender também de escolhas e de decisões individuais, uma vez que é da responsabilidade dos estudantes e das famílias todo o sustento deles durante o período no Brasil. Muitas coisas estão em jogo: expectativas individuais, gostos particulares e aspirações familiares – o que os pais esperam dos seus filhos e da graduação no exterior, qual o país de destino que eles preferem e o que é mais valorizado socialmente no mercado de trabalho guineense e cabo-verdiano em termos de prestígio social e econômico. Com isso, concordo com Gusmão (2009), quando ela ressalta que esse processo nem sempre é consciente, uma vez que os ganhos e as perdas que terão ao permanecerem tanto tempo “fora de lugar”, é um desafio tanto para as famílias e para os estudantes quanto para os governantes em seus países. Porque embora, segundo Anderson (1989) o deslocamento possa promover uma maior ligação afetiva e de pertencimento com a nação, vai produzir também, na concepção de Hall (2003), um olhar diferenciado para a terra de origem como se esta tivesse se tornado irreconhecível, fazendo questionar uma visão de identidade essencial, pura, e um sentido fixo de tradição. As mudanças são inevitáveis e, muito embora o compromisso seja com o regresso, há sempre a possibilidade de não retornarem. 

No Brasil, eles estão pela primeira vez sozinhos, sem a proteção familiar, num lugar que lhes é estranho, tendo que estabelecer novos vínculos sociais e afetivos em contato com diferentes códigos de interação. A saudade, sempre presente nos relatos, produz um espaço simbólico no trânsito entre “o aqui e o lá”. Lá está a casa, a família, os amigos, a língua “crioula”, as línguas étnicas. E para solucionar os problemas cotidianos vividos ao chegar e os riscos dessa intensa mobilidade, eles se unem, fazem festas regularmente, criam associações, comunidades e repúblicas de estudantes que integram os indivíduos, pelo princípio da reciprocidade, em redes de solidariedade para além da família, da casa, e da nação. 

Entre os estudantes recém-chegados a Fortaleza a “saudade de casa” e a “solidão” foram os sentimentos mais fortemente ressaltados, aliado às dificuldades de adaptação, como fazer amigos, encontrar lugar para morar, conseguir fiador, entender o “português do Brasil”, e por se sentirem, muitas vezes, discriminados por serem negros e estrangeiros. Talina, cabo-verdiana, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), entrevistada em Praia, disse que nunca havia se visto ou se pensado como estranha por ser negra, tampouco por ser estrangeira. Em Curitiba, isso foi dito a ela: “você não é daqui, você é negra”. Cadijatu, guineenses, formada em Administração pela Universidade Federal do Ceará (UFC), também disse ter se sentido discriminada em Fortaleza. Disse que no início foi muito difícil fazer amigos na universidade e que no primeiro dia de aula um dos colegas de sala perguntou: “o que você veio fazer aqui? Aqui é a universidade”. Não é preciso dizer que o Brasil, um país com um passado igualmente de colonização portuguesa, mestiço e negro, que defende a democracia racial com a negativa de racismo, na verdade construiu sua identidade nacional assentada em grandes contradições (FERNANDES, 1978; DA MATTA, 1981; CHAUÍ, 2001), resultando num vasto debate sobre processos intensos de discriminação e racismo. 

Vividos e expressados de maneira específica, esses sentimentos de solidão, estranhamento, saudade, afirmam uma maneira singular de pertencer a um determinado lugar, uma determinada sociedade, com distintas maneiras de expressar e experimentar as emoções. E o fato de se sentirem sozinhos, sob condições bastante semelhantes, em contexto de transitoriedade, possibilita o desdobramento do sentimento da saudade no sentimento de solidariedade. 

Matilde, cabo-verdiana, graduada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e entrevistada em Praia, ao falar sobre sua chegada ao Brasil, destacou a existência de uma grande solidariedade entre os estudantes cabo-verdianos, dizendo que: “se um cabo-verdiano chega em qualquer lugar ele não fica na rua, é só bater na porta: ‘a mi krioulo, a mi cabo-verdiano, jam bem’, cheguei”. Ela mesma, assim como muitos outros, passou pela experiência de morar com outros estudantes cabo-verdianos, e/ou com guineenses, que não se conheciam anteriormente, e mesmo não tendo espaço para mais ninguém no apartamento. Disse que durante um ano dormiu na sala sem poder se quer desarrumar a própria mala. 

As redes de solidariedade possibilitam uma reconfiguração do sentido de família mobilizando os estudantes a se unirem pelo princípio da reciprocidade (ELIAS, 1993; SIMMEL, 1964; MAUSS, 1974). A auto-denominação “comunidade” refere-se a um contexto específico em que todos se incluem por serem todos estudantes estrangeiros, por fazerem parte de uma elite intelectual e\ou financeira em seus países, e por estarem numa faixa etária muito próxima, muito embora isso não exclua os conflitos inter-pessoais que não deixam de ocorrer e nem as distinções e separações entre eles, com a criação de grupos menores dentro do grupo mais amplo que idealmente englobaria a todos. 

Ao contrário do caso estudado por Rezende (2009), em que os estudantes brasileiros de pós-graduação no exterior evitavam restringir o convívio social apenas aos brasileiros, os estudantes guineenses e cabo-verdianos quando estão fora de seus países reforçam o vínculo entre eles. Eles procuram dividir apartamento, almoçam juntos no restaurante universitário, saem para passear sempre em grupos e, regularmente realizavam eventos e festas para dançar a música, beber e comer a comida de seus países. Há eventos formais como a comemoração à independência de Cabo Verde e/ou de Guiné-Bissau, ao dia da África[2] (evento mais amplo que reúne estudantes de todas as nacionalidades do continente) e outros informais denominados pelos cabo-verdianos de “balizinhas”, que se constituem em pequenas reuniões e festinhas nas casas uns dos outros, sem um motivo específico, apenas pelo encontro. Segundo os relatos, as festas de independência e, especialmente as “balizinhas”, que ocorriam com mais frequência, eram importantes, pois nesses momentos podiam falar crioulo, comer cachupa (comida típica de Cabo Verde), caldo de mancara (de Guiné-Bissau), colocar as conversas em dia, falar dos problemas na universidade, também se divertir, dançar e ouvir a música de seus países, e de outros lugares que gostavam, como hip hop e reggae. Uma maneira de “matar a saudade” e reviver a nação estando fora dela mesmo que de forma idealizada, imaginada e ressignificada (SAHLINS, 1990) em outro contexto nacional e cultural. 

A partir da denominação “comunidade” eles marcam sua identidade e nacionalidade em contraste com a alteridade encontrada no Brasil. Dessa forma, sentem-se mais fortes e mais protegidos uns pelos outros, produzindo uma rede de cooperação e de solidariedade entre eles como uma forma de solucionarem os problemas cotidianos vividos como estrangeiros. Ao mesmo tempo modificam e ampliam o sentido de família quando se denominam também como “primos e irmãos”. Obviamente, o sentido de “comunidade", “irmandade” é sempre idealizado e imaginado politicamente, uma vez que são de ilhas diferentes (no caso dos cabo-verdianos), etnias diversas (no caso dos guineenses), com grande diversidade cultural, com sotaques e costumes distintos, de diferentes classes sociais, e, muitos deles, só se conhecem fora do país. E mesmo que preservem vivos seus laços de união, é bem provável que não venham mais a se encontrarem no futuro. 

Mas não se pode perder de vista que os sentimentos de solidariedade e de família são construídos socialmente durante a infância, antes mesmo da partida para o exterior. A partida já faz parte de suas vidas mesmo que nunca tenham saído do país. Há sempre alguém na família que mora ou já morou fora. Especialmente entre os cabo-verdianos, em que a sociedade se especializou em “ejetar os seus membros para fora do país” (LOBO, 2010) essa realidade é bastante conhecida. 

Chegado o momento do regresso, ao final do curso, depois de alguns anos no Brasil e vividos muitos processos de mudanças – físicos e intelectuais, de jovens a adultos, de estudantes de graduação a bacharéis formados –, esses sentimentos se invertem. O estranhamento e o medo passam a ser do retorno, das expectativas que os familiares depositaram em seus projetos e de um novo processo de adaptação: como procurar emprego, se re-inserir na sociedade, encontrar um novo lugar como guineenses e cabo-verdianos, já diluído pelo trânsito. 

Dessa forma, regressar pode ser tão difícil quanto chegar, uma vez que ao voltar sentem-se também deslocados, só que agora em sua própria casa, em seu próprio país. Embora voltem com o status de uma graduação no exterior, regressam à casa dos pais, muitas vezes, sem poder usufruir de um espaço reservado só para si, como normalmente conseguiam conquistar em seus apartamentos de estudantes no Brasil. Em seus relatos disseram sentir muita falta da maneira “descontraída dos brasileiros e que já estavam totalmente adaptados a realidade brasileira” – como poder ir para a aula de chinelo e bermuda, chamar o professor por ‘você’, da liberdade da vida de estudante e dos amigos que fizeram, alguns deles, ao longo de quatro a sete anos vivendo no Brasil. Eles são afetados pelo trânsito, e o Brasil passa a ocupar um espaço significativo de pertencimento em suas identidades. O que faz também surgir um sentimento de saudade invertido de uma casa construída fora de Cabo Verde e de Guiné-Bissau. 

Isso foi percebido nos gestos, nas maneiras de se vestirem e de se identificarem – “eu sou do Ceará”, “eu sou da Paraíba”, “eu sou da UFF”, “eu sou da USP”, “eu sou de Curitiba” –, bem como nos diferenciados sotaques ao falarem o português do Brasil, cada um misturando ao seu próprio sotaque o sotaque proveniente do estado do Brasil onde viveram. Assim, revelado também os diversos Brasis e a dificuldade de se falar numa identidade essencial e homogênea. 

A narrativa reforça o caráter público e social das emoções e a importância de analisá-las sem esquecer a dimensão política dos “discursos emocionais” e dos contextos em que são acionados (ABU-LUGHOD E A. LUTZ, 1990), uma vez que problemas como inclusão e exclusão são cotidianamente vivenciados, produzindo novas reconstruções de sentidos e novas maneiras de se sentirem guineenses e cabo-verdianos. Nesse caso, a saudade, vivida na fronteira e em razão da fronteira, passa a ser um elemento de união e construção de identidades, promovendo alianças que transbordam as concepções de parentesco como consanguíneo, e permitindo uma outra ideia de família.

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[1] Os principais países de destino para a emigração são: os Estados Unidos (Boston, New Bedford e Pawtucket), Portugal (Lisboa, Setúbal, Porto e Faro), Holanda, Angola, Senegal e Brasil.

[2] O 25 de Maio é o símbolo do combate que o continente africano travou para sua independência e emancipação. A data, hoje, comemorada como sendo o Dia da África, mantém vivos os ideais que levaram à criação, há 40 anos, em Adis Abeba, Etiópia, da Organização da Unidade Africana (OUA) – agora transformada em União Africana (UA).



Daniele Ellery Mourão é Pesquisadora e realizadora audiovisual na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  

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