Ir uma e voltar outra. Em plena juventude, prestes a deixar a família e seguir para Portugal. Lá estudar medicina, mergulhando na cultura lusitana. Começar sua própria família tudo isso nos anos 70, durante a Revolução dos Cravos.
— por Regina Rangel
Regina Rangel à esquerda, diante da universidade de Lisboa |
Era 1972. Eu me preparava para o vestibular em
Medicina, sem saber se queria mesmo ser médica. Talvez por isso, não tenha
obtido aprovação, para a Cesgranrio, aqui no Rio de Janeiro. Ainda assim achei
melhor insistir, pois minha segunda opção, Nutrição, era menos interessante
para mim. Não me resolvia e o tempo passava, foi então que recebi um telefonema
de uma amiga, contei-lhe minha história e ela sugeriu que eu tentasse de novo,
dessa vez seguindo para Lisboa. Perguntei: “Nuno Lisboa ou Celso Lisboa?”[1]
Gostei da ideia.
Fui ao consulado me cadastrar com a intenção de
prestar o exame para a Universidade de Lisboa e, qual não foi a minha surpresa,
ao saber que minhas notas aqui no Brasil poderiam ser aproveitadas? Logo recebi
uma carta assinada pelo cônsul, indicando que comparecesse ao Largo do Rilvas,
número 5, no Ministério dos Negócios Estrangeiros — em Portugal. Já estava
aprovada.
O próximo passo era dar a notícia à minha família.
Uma coisa é dizer que você vai fazer medicina, outra é dizer que vai fazer
medicina em outro país... Sendo mulher... E caçula. Não, não é uma coisa fácil.
Sobre a minha mudança, meus familiares divergiam; em especial meu pai, pois era
pessoa muito conservadora, mas se preocupava e queria o melhor para sua filha.
E eu, que nunca tive chave de casa, fui viver sozinha em outro país, aos vinte
anos. Ironicamente, meu pai, foi o grande apoiador de todo o projeto e se
envaidecia vendo a filha concretizar um sonho dele, há muito acalentado.
Costumava me escrever e no envelope das cartas expedidas, frases de
escritores portugueses como Thomaz Ribeiro: “Nunca vi Lisboa... e tenho pena.”
Não morar em Coimbra foi uma das primeiras decisões.
Passei por lá rapidamente e achei triste, solitária, além de ser longe da
capital; sem bancos, praia, consulado, movimento.
Cheguei em Portugal em um momento difícil e tenso.
Assustei-me com atos de contenção, com a polícia com cães perseguindo alunos.
Logo falaram em revolução.
Nesse início, ardilosamente, argumentei com meu pai
que me enviasse mais dinheiro, para eu aproveitar a oportunidade de conhecer a
Alemanha e visitar uma prima que morava em Bonn. E assim, ainda deixaria um
pouco do tumulto que se instalava em Lisboa. Porém, antes de viajar, precisava
ajudar um amigo brasileiro que, assim como eu, fora com a mesma intenção de
estudar. Essa amigo se submetera a uma prova escrita e discursiva, com conteúdo
que nós não tínhamos aqui no Brasil. E na tentativa de salvar sua matrícula,
decidimos marcar uma audiência com o secretário de educação. Fomos eu, sua tia
e ele, todos cheios de ousadia, pedir uma revisão da prova. Ela fez um apelo
emocionado ao secretário de Educação e, chorando copiosamente,
tentou comover aquele senhor. Não obtivemos êxito algum e, sem muita
alternativa do que fazer e ainda preocupados com a situação da capital
portuguesa, partimos num trem para a parte festiva de toda a viagem. Destino:
Espanha, França, até chegarmos à Bonn. Foram dias de muita aventura, com
direito a amizade com o chef do trem, que até nos descolou um licor
maravilhoso de nome Tia Maria. E também, coincidentemente, encontramos o
secretário de Educação no mesmo trem, servindo-se de uma merenda
(chamou-me a atenção o seu guardanapo de linho com o monograma bordado à mão).
Ele, no entanto, desceu em sua cidade natal: Guarda. Estava indo visitar sua
mãezinha... Além da tia querida, estava conosco uma lady lisboeta, que
nos ciceroneava e nos acompanhava aos restaurantes e tascas,
ensinando-me a não cometer a gafe de usar o palito que estava sempre ali, à
mesa, e disponível. Também me ensinou a beber vinho tinto e me apresentou o
vinho verde, no Norte — desse não consegui gostar...
***
No começo das aulas, instalei-me numa casa próxima à
universidade, em um bairro de nome que, no Brasil, seria motivo de piada:
“Rego”, com sua rua principal repleta de repúblicas estudantis. A dona da casa
era uma senhora que, volta e meia, lavava sua roupa no rio. Em algumas ocasiões
eu fui junto lavar minha roupa. Próximo de mim, morava aquele amigo brasileiro,
o mesmo que não obteve admissão na universidade, e que tocava violão se
apresentando em alguns shows e por sorte não morreu num acidente envolvendo um
grupo de dez jovens, entre eles um líder de turma angolano, o grande
incentivador para que fossem a este lugar, ao sair da patuscada, altas
horas...
Era comum curar porre bebendo cacau no Cais do Sodré.
No caminho, o angolano resolveu guiar o grupo até um monte de pedra, que
avança para o mar. A velocidade da água é de mais de 100 km/h , abrindo um
buraco na pedra, que foi chamado de “Boca do Inferno”. Foram todos levados
pelas ondas, que lamberam as pedras e a maioria daquelas pessoas desapareceu no
mar. As autoridades não se arriscavam a entrar ali para buscar os corpos. Os
próprios amigos das vítimas se mobilizaram e os bombeiros vieram a resgatar,
depois de muitos apelos, seis corpos: três brasileiros, um angolano e dois
portugueses. Lembro-me de, no dia seguinte, ir até a estação de Rossio atrás de
uma cabine internacional falar com meus pais e tranquilizá-los, pois a tragédia
foi noticiada no Brasil.
Dentre as dificuldades com as quais me deparei,
telefonar para casa era a mais complicada. Era muito distante de onde eu morava
e precisava aguardar mais de três horas para que a ligação fosse feita. Minha
primeira amiga lisboeta, Manoela, era funcionária do Banco do Brasil. Lá
“inauguramos a internet”: fazíamos contato via Telex com meu pai, que
trabalhava na agência do centro do Rio de Janeiro. Foi emoção pura! Ler a
mensagem saída daquela geringonça, eu estava teclando com meu pai!
Manoela também me ajudava nas sugestões do que comer,
como um pequeno almoço que constava de um galão e um sandes de
fiambre. Adorava ver isso! Um povo que falava a mesma língua, mas de um
jeito totalmente diferente. No primeiro almoço do bandejão da universidade,
pedi um bitoque. Como sabia da raridade de certos itens, levei na mala
do Brasil coisas como: Polvilho Antisséptico Granado, ketchup e esbarrava em
reminiscências, como no dia em que, na casa de uma amiga, vi um pote cheio de
brigadeiro, trazido do Brasil por alguém.
A diferença essencial (muito comum em toda Europa) é
que se comia muito mais batata que arroz. E bebia-se muito mais vinho do que
cerveja. Numa festinha de primeira comunhão em Trás- os-Montes, fiquei
espantadas com miúdas de dez anos, correndo pela casa de vestido branco
e parando na mesa de doces para beber vinho do porto!
Outro estranhamento foram os cafés. As pessoas
sentavam-se com um livro na mão e ficavam ali, tranquilamente, horas sem
consumir nada, às vezes um chá ou café. Só nos dias de hoje encontramos isso no
Brasil.
Havia a famosa feira popular, onde experimentei as
sardinhas na brasa. Também na brasa, em carrocinhas espalhadas por toda a
cidade (como os pipoqueiros aqui no Brasil), provei as castanhas portuguesas,
típicas durante outubro. Outra mágica que acontecia neste mês era pisar em
tapetes de folhas secas, nos lindíssimos parques cujas árvores variavam do verde
escuro, ao claro e ao marrom.
Algumas imagens dessas passagens foram marcantes
como: a primeira vez que vi a neve, na Serra da Estrela, a caminho de Manteigas
— um vale lindíssimo!
A Vila de Murça, onde fabricavam o vinho Porca de
Murça. Na praça principal estava instalada uma estátua com a porca
medieval. Lá eu conheci um padre que me convidou para um pequeno almoço,
servido por uma criada, de uniforme preto com avental engomado. Mais parecia um
brunch, pois a mesa era muito bem servida, com presunto da Serra da
Estrela, pães, bolos, queijos e doces...
Mesmo com toda a tensão que pairava em Lisboa, no
Brasil a interpretação era outra. Chico Buarque dera uma entrevista para um
canal de televisão dizendo que o seu desejo era de que os ventos atravessassem
o oceano, levando liberdade democrática também para o Brasil. (“...Foi tão
linda a festa pá!...” Tocava na rádio também músicas como Grândola Vila Morena,
que passou a ser a trilha sonora da revolução.
Na universidade, transitavam alunos de todas as
possessões na África: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau. Também das Ilhas
Madeira, Açores e um ex-seminarista de Macau, alguns de Cabo Verde, além das
dezenas de brasileiros, de várias regiões. Sul, Sudeste e muitos do Nordeste. A
nossa fama era de que “não queríamos nada com a hora do Brasil”. Uma das cenas
inesquecíveis foi ver um aluno que diziam ter vindo da guerra em Angola. Ele
andava com um “troféu” na cintura: um dedo mergulhado no formol, orgulhando-se
de trazer a prova de que esteve lá, gabando-se de ser de extrema direita.
Tudo culminou com a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974 .
Saímos às ruas para comemorar a queda do salazarismo. Havia tanques nas ruas e
dos canhões saíam cravos vermelhos. Por isso o nome. Todos marchavam gritando:
“O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO!”. Participei de vários movimentos, palestras
e RGEs (reunião geral de estudantes) no campus, onde se ouviam palavras de
ordem como: “Pela liberdade democrática!”, “Abaixo o latifúndio!”. Depois, as
pessoas se sentavam nos cafés para beber um fino ou muitas imperiais.
Íamos de carro para os copázios, quando ouvi
no rádio uma música que me despertou curiosidade. Os gajos diziam: “essa
brasileira sabe das coisas”. Talvez sim, porque a nossa fama era de sermos a
maioria superficiais, sem cultura, nem engajamento político, haja vista a
propaganda de turismo, sempre mostrando as mulheres de tanga, na praia ou nas
novelas que se referiam às sopeiras (donas de casa que assistem TV as soap
opera).
Os colegas da faculdade costumavam marcar jantares, e
aceitei o desafio de cozinhar uma feijoada para um grupo de vinte jovens.
Apesar do nervosismo, consegui me safar bem (em vez das nossas carnes secas,
usei coisas de porco fresco, compradas no mercado, um luxo!) eles elogiaram
muito.
A minha luta entre me jogar naquele mundo novo e
estudar era o grande desafio. Tentei permanecer naquele cenário em que muitos
brasileiros voltavam e outros levavam a coisa a sério e até fiz amizade com uma
menina do Paraná, com quem estudava muito. Minha primeira aula de anatomia foi
num grande anfiteatro e o professor me zoava cantando: “É pau é pedra é o fim
do caminho...” sempre que eu chegava e, na chamada dizia: “Dona Elis Regina!
Me envolvi com um gajo que tinha chegado da
Guiné-Bissau. Era militante do Partido Comunista de Álvaro Cunhal e sofreu por
combater na guerra colonial, uma vez que seus princípios eram totalmente
contrários à ditadura vigente. Como responsável por dezenas de jovens,
analfabetos, que lutavam como soldados por algo que sequer entendiam, viu seu
caminho interrompido na faculdade de direito. O serviço militar durava dois
anos e muitos voltavam mutilados. No Brasil só escutava narrativas da Guerra do
Vietnã e foi uma surpresa enorme para mim, que um país tão pequeno, sofresse
com tantos jovens sofrendo na guerra.
Foram três anos de um relacionamento conturbado pela
grande diferença de cultura e mentalidade. O grande saldo positivo foi a
chegada de um filho, muito esperado e amado, que quase nasce lá... Entretanto,
escolhi o conforto e o aconchego da família, vindo ao Rio de janeiro e voltando
com o menino nos braços, me deparando com uma Lisboa em recessão, na
bancarrota. Ainda fiz um grande esforço, mas sem ajuda, tendo que cuidar dele,
estudar e ainda de casa, me vi obrigada a, mais uma vez, pedir socorro a meus
pais e voltar com o meu filho para o Brasil...
Trinta e seis anos passados, ainda fica uma ponta de
curiosidade. Com o olhar de hoje, como seria rever Lisboa? Quem sabe em breve,
concretizo o sonho de voltar lá.
Regina Rangel é geminiana, tagarela, espontânea e agitada. Faz viagens afetivas por Portugal, Brasil e Inglaterra. Canta em coral. Budista de alma e coração. Curte pipoca, jujuba e brigadeiro.
estou emocionada de reler,reviver, podendo compartilhar uma historia tão importante porque é a minha.
ResponderExcluirSimplesmente adorei!
ResponderExcluirRegina, "menina", podes voltar....é como se aterrasses (aterrissasses- Br) noutro planeta....Ainda há "galões e sandes de fiambre", também "bitoques"...."finos" e "imperiais"....No resto os secretários da "Educação" não andam de combóio (trem-Br), são «democratas», só avião ou carro de luxo, não se misturam com o povoléu.....("filha" aí no Brásiu como é que é ?)....Só duas coisinhas para acabar. A Porca de Murça não é medieval, é celta, de antes da formação de Portugal. Segundo, o gajo que andava com o dedo em formol era um idiota exibicionista. Nenhum verdadeiro combatente, jamais, andaria com uma coisa dessas. Acredita, sei do que falo. Aliás em 72, só em Angola as forças Armadas Portuguesas tinham 30 mil negros a combater, como ias andar com dedos de negros em frascos?!!!
ResponderExcluirNo resto Regina, virou o disco e tocou o mesmo, é um País falido. De "democratas" falidos. Cumps.