— por Bernardo Buarque de Hollanda
O falecimento de Sócrates, ocorrido no mesmo
dia da conquista corintiana de mais um título brasileiro, gerou uma comoção
nacional e proporcionou uma situação até certo ponto embaraçosa para a grande
imprensa. Embora o ex-jogador estivesse sendo internado pela terceira vez, não
se esperava que Sócrates viesse a falecer justo na madrugada do dia quatro de
dezembro, horas antes da rodada decisiva do Campeonato Brasileiro, para a qual
o Corinthians era anunciado como seu franco favorito. A festa de comemoração do
pentacampeonato, preparada ansiosamente pela torcida, depois de um ano acirrado
de disputa, teve de ser dividida com o luto e a tristeza pela perda de um ídolo
marcante na história do clube e do país.
As circunstâncias, por assim dizer
“dramáticas”, de sua morte contribuíram para o pesar generalizado, que se
amplificou em âmbito internacional, com o destino agônico do craque. As idas e
vindas aos hospitais desde o mês de agosto, sempre acompanhadas pela mídia,
exigiam de Sócrates um esforço no sentido de se recuperar dos efeitos
provocados pelo consumo excessivo de álcool. A recuperação envolvia um
acompanhamento médico intenso, que prescrevia uma série de renúncias e a adoção
de novos hábitos de saúde em seu cotidiano.
Passado o susto inicial, após a primeira
internação, parecia que pouco a pouco Sócrates voltaria à sua rotina normal. Ao
menos, voltava-se a ver o jogador a participar dos programas esportivos na
televisão, fazendo seus comentários habituais sobre futebol. Ainda que o
sorriso no rosto não escondesse o inchaço nem as marcas faciais do desgaste
físico, a impressão – e a esperança – era a de que a normalidade fosse se
restabelecer com o passar do tempo.
Não foi o que aconteceu. Após uma melhora
inicial, a situação de Sócrates se agravou novamente em setembro. Por fim, em
sua terceira internação, entre o final de novembro e o início de dezembro, o
jogador não resistiu a uma hemorragia digestiva. Infecções se generalizaram
pelo corpo e o mesmo veio a falecer na madrugada do último dia 04.
Como costuma acontecer nas narrativas dos meios
de comunicação, a morte de Sócrates levou a uma série de reportagens que
procuraram lembrar a trajetória do ídolo, rememorando os feitos no Corinthians
e na Seleção Brasileira. Naquela noite, o noticiário dominical registrou os
minutos de silêncio em sua homenagem nos diversos estádios do Brasil, as faixas
de solidariedade da torcida italiana do Fiorentina, onde Sócrates atuou, e o
carinho da Fiel – como são conhecidos
os torcedores corintianos – manifestado no Pacaembu. As relembranças midiáticas
se prolongaram ao longo da semana, com a exibição de imagens de arquivo a
reconstituir a história do jogador, desde que este principiara, com dezenove
anos, na meia-direita do Botafogo de Ribeirão Preto.
*
Mais do que reduzir a morte de Sócrates a um
fato isolado ou a um problema de ordem moral, resultado do desregramento e da
dependência alcoólica, gostaria de tecer breves comentários sobre a
singularidade da carreira do jogador de futebol, em particular aqueles que se
tornam ídolos e cuja imagem se projeta para além do próprio esporte.
Já se disse que o futebol, assim como outros
esportes que se profissionalizaram ao longo do século XX, se caracteriza pela
brevidade e pela precocidade, tanto no início quanto no fim da carreira. Por
depender do vigor físico e da compleição atlética, o jogador tem de começar
cedo. Da mesma forma, sua profissão termina muito brevemente. De maneira
esquemática, pode-se dizer que a carreira compreende uma média de quinze anos
de vida útil, indo dos dezoito aos trinta e três anos de idade.
Sabe-se que o começo requer muito empenho, pois
é o momento de ser lançado e de afirmar-se no time principal. Vencido o
tortuoso caminho das “peneiras” e das categorias de base nos grandes clubes,
vive-se a fase do reconhecimento e da conquista de um “lugar ao sol”, naquele
que para muitos é o mundo dos sonhos, cultivado desde a infância.
A
propósito, diga-se de passagem, o primeiro episódio do documentário de João
Moreira Salles e Arthur Fontes, “Futebol – o Início” (1997, GNT), foi bastante
feliz ao retratar esta fase. Nele, abordam-se as peripécias e as agruras de
meninos que saem do Espírito Santo, de Goiás ou do subúrbio do Rio em busca da
“sorte grande” nas divisões inferiores do time do Flamengo. Não à toa, um dos
flagrantes inesperados do filme foi registrar Adriano – futuro ídolo e hoje
reserva do Corinthians – ainda garoto, recém-ingresso no Infantil, quando ainda
não se podia imaginar que viria a se tornar o legendário “Imperador” da torcida
rubro-negra, anos depois.
Se o princípio da carreira de jogador necessita
de afirmação, deve-se observar que seu início coincide com o final da
adolescência. Na maioria das vezes, o jovem aspirante tem de sacrificar sua
vida de estudante, justamente na transição entre a escola e a universidade.
Muitos são os que abandonam o colégio e apostam “todas as fichas” no futebol. O
risco é alto, uma vez que faltam garantias de sucesso e são inúmeras as
vicissitudes de quem se aventura num grande clube – contusões, má fase, rixas
entre os jogadores, problemas de relacionamento com técnicos, dirigentes
desleais, etc.
O acaso também pode comprometer o futuro do
jogador, encerrada a carreira. Sem uma formação escolar prévia, “pendurar as
chuteiras” significa ter de “correr atrás do prejuízo” e improvisar novas
formas de sobrevivência. Tudo isto em uma fase da vida na qual o mercado de
trabalho já se encontra com as portas fechadas para ele.
Porquanto isso aconteça com boa parte dos
atletas, vale dizer que esse não foi o caso de Sócrates. Este, com uma base
familiar oriunda da classe média, chegou a concluir o curso universitário e a
exercer sua profissão. Enquanto atuava como jogador, Sócrates formou-se em
Medicina, pela USP, em sua sede de Ribeirão Preto. Soa, no entanto, uma ironia
do destino o fato de Sampaio de Souza Vieira de Oliveira – nome completo de
Sócrates, nascido em Belém do Pará, a 19 de fevereiro de 1954 – ter-se diplomado
médico e ter sofrido com tantos problemas de saúde, depois de sua saída dos
gramados.
Se a questão financeira atinge muitos
jogadores, egressos das classes populares e que não tiveram tempo de
desenvolver uma formação paralela em meio às incertezas da profissão
futebolística, outro problema se coloca para muitos deles, quando do fim da
carreira. Um aspecto de ordem psicológica é posto, em especial, para os grandes
craques. Este diz respeito ao desafio do ídolo em lidar com seu próprio
“esquecimento”, perante a torcida e perante os meios de comunicação.
A experiência moderna da fama, que os gregos
antigos chamavam de “glória” e que os mediterrâneos do período medieval
entendiam por “honra”, teve a característica de ser ampliada exponencialmente
no século XX, com o advento dos meios de comunicação de massa – jornal, cinema,
rádio e televisão. Depois de conhecer o estrelato e o assédio público, parece
difícil aos ídolos terem de acostumar-se à decadência, ao anonimato e à vida cotidiana.
Por mais que haja formas de permanecer em
evidência – convertendo-se em técnico, lançando-se na política ou tornando-se
comentador esportivo de televisão, como foi o caso de Sócrates – a saída de
cena parece um dos momentos mais delicados entre as decisões de um ídolo
esportivo. Quando parar? Como saber qual é a ocasião mais apropriada?
Parar de jogar implica em ser esquecido, em
sair das manchetes dos jornais ou dos holofotes das câmeras de televisão.
Trata-se de uma tarefa nada elementar para vários destes personagens. Lembre-se
a propósito o exemplo do ex-jogador Romário, que adiou ao máximo a
aposentadoria e chegou a criar um fato midiático – o seu milésimo gol – como
assunto jornalístico, para que pudesse continuar em pauta pela mídia.
É neste contexto de saída da cena esportiva que
se coloca o drama vivido não apenas por Sócrates como por diversos outros
jogadores.
Durante a carreira, apesar da fama alcançada, a
bebida, as festas e as noitadas costumam ser rechaçadas no mundo moral do futebol.
De acordo com a lógica do “saudavelmente correto”, elas comprometem o
desempenho pleno do atleta, sua explosão muscular em campo.
Reprimida e censurada por muitos, a vida boêmia
também foi exaltada no futebol, através dos seus jogadores mais rebeldes e
contestadores. Nos idos dos anos 1980, houve inclusive um jornalista esportivo
que escalou uma “Seleção de Boêmios” na nossa galeria de craques. Esta era
composta por jogadores como Reinaldo, centroavante do Atlético-MG, Heleno de
Freitas, atacante do Botafogo, Zizinho, meia do Bangu, Jaguaré, goleiro do
Vasco, Paulo César Caju, do Fluminense, entre outros.
Com um significado social maior, o impacto do
alcoolismo no futebol parece se intensificar com o fim da vida ativa, com a
volta ao anonimato e com a incapacidade de administrar o destino fora das
quatro linhas. Já sem as cobranças da mídia, do clube ou da torcida, a exigir
raça e disposição, o álcool se torna o refúgio para muitos que se sentem
precocemente atirados no limbo.
Dentre os grandes ídolos do futebol, ficou
conhecido entre nós o “triste fim” de Garrincha, durante anos apelidado
carinhosamente de “a Alegria do Povo”. A sua morte, investigada em ensaio instigante
pelo antropólogo José Sérgio Leite Lopes, foi motivada não apenas pela depressão
como pelo excesso de bebida alcoólica.
Em 1983, aos cinquenta anos de idade, sete a
menos que o Doutor Sócrates, Manuel Francisco dos Santos morreu como um pobre
anônimo e indigente. Conta-se que o jogador passou quatro dias bebendo
ininterruptamente nos bares de Bangu, subúrbio do Rio de Janeiro, onde morava.
O bicampeão mundial entrou em estado de coma alcoólico e foi internado às
pressas no sanatório de Dr. Eiras, em Botafogo. Era a quarta internação. Acabou
sendo a última de Garrincha, sem que o mesmo viesse a receber qualquer
tratamento especial, desde a chegada ao hospital.
A dramaticidade de mortes como a de Mané
Garrincha e, mais recentemente, a de Sócrates, são motivos de consternação
geral. É como se o drama vivido pelo ídolo fosse sentido na carne por toda a
população, que com ele se identifica. Fora dos campos, sem a aura da idolatria,
o homem perde a condição de personagem acima dos indivíduos e é reconduzido à
condição de um reles mortal, com todas as fraquezas e vícios humanos que lhe são
inerentes.
A morte, conforme ensinam os antropólogos, é
restauradora. Tem a capacidade de reenviar o ídolo, seja ele esportivo ou não,
à condição de mito. A rememoração de um passado heroico, e a revalorização dos
seus grandes feitos, permitem que a posição “super-humana” do ídolo seja fixada
no reino da memória e colocada no rol das mitologias coletivas criadas pelas
culturas, a contar e a recontar as histórias sobre si mesmas.
Mito político do futebol brasileiro,
protagonista da Democracia Corintiana, no momento em que o país vivia o Tempo
das Aberturas, em princípios da década de 1980, Sócrates foi dragado pela carga
autodestrutiva com que muitos jogadores se deparam ao ver seu ciclo
profissional de futebolista interrompido. Jaz agora mais um mito no firmamento
do futebol.