Santuário de Delfos, Atenas |
Machado de Assis, em janeiro de 1866, publicou no Jornal das Famílias o conto “O oráculo”, utilizando elementos da
Grécia Antiga, o que, segundo Marta de Sena[1],
era de uso comum do autor nesse momento da obra. O conto segue uma linha
simples: Cecília, filha de um rico comerciante de nome Anastácio, teve seu amor
reprimido em nome da obediência que devia ao pai. Posteriormente, um outro
homem, visando unicamente a herança de Cecília, diz-se apaixonado por ela e cai
nas bênçãos de Anastácio. A mesma obediência é novamente cobrada pelo
negociante, mas a moça é firme: somente irá casar-se após uma consulta ao
oráculo. Cecília se nega a casar-se com Leonardo e diz que o motivo foi a
consulta feita ao oráculo. No final do conto, revela-se que o oráculo era
Henrique, antigo pretendente preterido por Anastásio e que se casou às
escondidas com Cecília.
A primeira surpresa do conto é que o personagem central não é Cecília,
mas Leonardo, descrito por Machado como um homem que apresenta a “má fortuna
quando se dispõe a perseguir um pobre mortal”.[2] De
certo, a referência aos clássicos ainda não é exata, mas estamos aqui em 1866,
quando Machado estava com 27 anos e iniciara há pouco sua carreira como
contista.[3]
Além disso, a preocupação em localizar o leitor — fato tão demonstrado por
vários comentaristas machadianos — aparece aqui como uma referência que, ainda
na primeira página do conto, repete-se: “Nesta sucessão de contratempos e
azares, Leonardo não chegara a perder a confiança na Providência”.[4]
Segundo Marta de Senna[5],
esse Machado — que cinco anos depois publicaria sua primeira coletânea de
contos — era apoiado “excessivamente na citação explícita de autores e, sobretudo,
personagens históricas”. Mesmo isso não aparecendo de maneira tão óbvia neste,
vale dizer que, nos contos publicados nesse período, a característica persiste
com força. O conto analisado aqui constitui uma das poucas exceções.
A questão do
oráculo
Os oráculos são descritos pela
primeira vez na história da literatura por Homero. Na Ilíada, temos a
aparição do oráculo de Dódona, um local de culto a Zeus e se praticavam rituais
de premonição para reis e guerreiros. Os oráculos gregos constituem um aspecto
fundamental da religião e da cultura, pois eles são a resposta dada por um deus
a uma consulta de cunho pessoal, geralmente referente ao futuro. Estes oráculos
só podem ser dados por certos deuses, em lugares determinados, pelas pessoas
determinadas e respeitando-se rigorosamente os ritos: a obtenção do oráculo se
assemelha a um culto. Além disso, interpretar as respostas do deus, que se
exprime de diversas maneiras, exige às vezes um aprendizado. Dessa forma, tanto
a pessoa que se comunica com um deus quanto o local onde esta comunicação é
realizada recebem o nome de oráculo.
Segundo Homero, no canto XVI da Ilíada:
Zeus, rei dodôneo,
Pelasgo, que longe de todos demoras,
e tens o império em
Dódona gelada, onde os Selos que dormem
no áspero chão e que os
pés nunca lavam, te servem de intérpretes!
Do mesmo modo que
ouviste o pedido que fiz há algum tempo
e me deste honra,
infligindo castigo ao exército acaio,
mais uma vez te suplico
atenderes-me ao que ora te peço. (…)
Ilíada,
1996, p.258.
O oráculo de Dódona é conhecido
por ser o mais antigo oráculo destinado a Zeus. Seus consulentes, em maioria,
eram reis e guerreiros nobres que iam a Dódona em busca de conhecimentos sobre
aventuras futuras, ou decisões a ser tomadas. Entretanto, já em Homero, aparece
a referência cruzada entre o local em que o oráculo recitava suas premonições e
o próprio sacerdote.
O mais conhecido dos oráculos,
porém, encontrava-se em Delfos. Era um local de culto a Apolo que mantinha uma
tradição ligada à Pítia – uma sacerdotisa que ouviria as palavras do próprio
deus acerca dos destinos religiosos e, devido a sua fama, em algumas matérias
era soberano em toda a Grécia. As palavras da Pítia, após uma consulta, eram
traduzidas por um sacerdote em versos hexâmeros para que o consulente pudesse
tomar conhecimento da mensagem. Este oráculo tem seu testemunho mais seguro em
Plutarco, que fora um sacerdote de Apolo, passando um período considerável em
Delfos.[6]
Para ele, o oráculo teria um funcionamento que poderia ser compreendido numa relação
entre o deus, a mulher (pitonisa) e uma espécie de gás. O gás, chamado de
pneuma seria um veículo de comunicação entre Apolo e sua pitonisa. Este pneuma
seria um gás que provinha de uma fonte próxima ao templo e que continha
substâncias alucinógenas caso a pessoa estivesse em jejum, como era o caso da
pitonisa. Segundo Plutarco, as pessoas, quando iam consultar os desígnios dos
deuses, podiam sentir o odor do pneuma sem que houvesse algum problema, a única
a entrar em transe seria a pitonisa.[7] Os
consulentes do oráculo de Delfos eram de todo o tipo: pastores, reis,
guerreiros, etc. Até mesmo Alexandre consultou-se nesse famoso oráculos. As
questões eram sempre respondidas pela pitonisa que, em transe, utilizava de
trocadilhos ou canções para dar os desígnios dos deuses.
Dessa maneira, os oráculos citados
por Machado de Assis em seu conto não eram de todo desconhecidos para homens
experimentados nas letras, mas eram-no para a maioria da população carioca que
lia dificilmente e mal.[8]
A forma mais conhecida de predição
do futuro para essa sociedade era o papel dado às cartomantes e ciganas que,
desde o início do século XIX, aportaram no Brasil a fim de lucrar com sua
magia. Machado de Assis, anos depois da publicação deste conto, irá escrever um
conto em que uma cartomante é decisiva para o desenrolar da narrativa, mas,
neste conto, o autor recorre ao conhecimento mais antigo (Antigüidade clássica)
para remodelar a significação do termo oráculo.
A visão
machadiana de um oráculo
Diferente de Homero, Machado de Assis introduz o oráculo tardiamente em
sua narrativa. No conto, ele não é um preceptor de bons ou maus augúrios, mas
um instrumento da trama. Além disso, para que uma pessoa se consultasse com o
oráculo, seria necessário um traje especial:
Enfim apareceu Leonardo de casaca preta e gravata
branca, traje muito diverso daquele com que os antigos iam buscar as respostas
dos oráculos de Delfos e de Dódona. Mas, cada tempo e cada terra com seu uso.
ASSIS, Machado. Obra
Completa. Vol. II, 2008, p. 836.
Aqui, o conhecimento do autor é surpreendente: não somente o famoso e já
citado oráculo de Delfos, mas o aparecimento do oráculo de Dódona faz-nos crer
que Machado estava a par de uma gama de textos antigos maior do que seria
esperado para um homem na periferia dos centros culturais do século XIX. De
fato, Machado de Assis conseguira uma boa gama de textos com alguns dos autores
e literatos de então.[9]
O autor insere uma ritualística própria para a consulta ao oráculo. Não
há indicações em Homero sobre as vestes para a consulta, tampouco Plutarco,
mais tarde, coloca as vestimentas a serem consideradas para o consulente, mas
Machado insere essa ritualística como ponto de verossimilhança interna para a
consulta que deverá realizar-se no quarto de Cecília. Se a heroína iria
consultar-se, deveria fazê-lo com toda a pompa necessária para convencer seu
pai de que se trata de um assunto sério.
Além disso, Machado não menciona visitas ao quarto de Cecília. No conto,
este permanece como local sagrado para a última descoberta — o oráculo era, na
realidade, seu esposo, num casamento realizado às escondidas.
Conclusão
Diferente do que propõe Marta de
Senna, Machado de Assis não somente utiliza as citações aos clássicos da
literatura como mera ilustração, mas também, desde os primórdios de suas
experimentações com os contos, demonstra que pode utilizar as citações de modo
diverso e surpreendente. O conto “O oráculo” mostra o domínio do autor com o
conhecimento clássico: não somente utiliza diversos autores para conceber sua
versão romântica do oráculo, como também apresenta-o em seus dois significados:
pessoa que faz as predições e local onde o consulente faz suas perguntas.
***
Referências
ASSIS, Machado de. Contos
Fluminenses. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (1869).
------. Contos Fluminenses. Rio de Janeiro:
Garnier, 2005 (1869).
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vol.
01. Petrópolis: Vozes, 1998.
CAVALCANTI, Djalma (org.). Contos Completos de
Machado de Assis. Volume 01. Juiz de Fora: Ed UFJF, 2003.
HALE, John; et. alii. “A fonte do poder, no oráculo de
Delfos”. In. Scientific American. Edição 16. http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/a_fonte_do_poder_no_oraculo_de_delfos.html Setembro de
2003.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de
Literatura Clássica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto
Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado
de Assis – o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São
Paulo: EdUSP, 2006.
JÚNIOR, R. Magalhães. Machado de Assis – Vida e Obra. Vol. 1 – Aprendizado. São Paulo:
Record, 2008.
[1] Cf. “Introdução”. In. ASSIS,
Machado de. Contos Fluminenses. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. pp. IX-XXXVI.
[2] ASSIS, Machado de. Obra Completa. Vol. II. São Paulo: Nova
Aguilar, 2008, p.832.
[3] Segundo Djalma Cavalcanti,
Machado de Assis inicia sua produção em prosa em 1858, mas somente na década de
1860 apresenta uma produção sistemática nesse gênero.
[4]
Op. cit., p. 833.
[5]
Op. cit., pp. XII-XIII.
[6] cf.
HARVEY, Paul.
Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1987, p. 155-6 e 364.
[7]
cf. HALE, John. et. alii. “A
fonte do poder, no oráculo de Delfos”. In. Scientific American. Edição
16 – set. 2003, p.1-2.
[8] cf. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os
leitores de Machado de Assis – o romance machadiano e o público de literatura
no século 19. São Paulo: EdUSP, 126-30.
[9] Cf. JÚNIOR, R. Magalhães. Machado de Assis – Vida e Obra. Vol. 1 –
Aprendizado. São Paulo: Record, 2008, p. 206.
Thomaz Amorim Neto é doutor em Literatura Comparada, tendo sua tese abordado as implicações das histórias em quadrinhos de super-heróis como constitutivas de uma nova espécie de mitologia. Atua como docente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (como Magneto), em alguns blogs sobre quadrinhos (como um certo Doutor) e comenta em fóruns sobre o tema (tendo Kal-El, leia-se John Constantine, como inspiração).