Todos os povos
têm no Mito a orientação primordial do seu existir. O povo Grego, contudo,
recebeu do Mito, além do princípio da compreensão do seu existir e do seu mundo
circunscrito, isto é, da compreensão condutora de sua conduta por respeito ao Todo
determinante de sua existência, a solicitação para poetar e, assim, legar à
história o fundamento mítico da compreensão humana sempre já verificado em
todos os povos.
Trazendo em consideração a palavra
de Hölderlin, em seu Hipérion, de que
a religião é o amor à Beleza, estimamos que seja precisamente um tal amor a
fonte originária do Dizer do Mito, ou o que é o mesmo, da relação possível do
homem com o Divino. O Mito Grego é a Palavra poético-essencial da linguagem
acerca da Beleza. Um dizer poético essencial é sempre um proferimento do
Sagrado – do fundo oculto de possibilidade de toda ocorrência doada – ; suas narrativas são as
primícias do saber e da história oferecidas aos Deuses para o seu próprio
deleite, e repetidas ao homem para a orientação do seu existir no inefável de
sua estadia neste entre de Céu e Terra.
E, se Heidegger nos ensina corretamente a ler Hölderlin, um dizer do
Sagrado é, em princípio, um proferir instituidor do Ser, portanto da verdade
das condições de possibilidades últimas das determinações existenciais do Ser
do homem e das determinações categoriais do Ser de tudo que se lhe apresenta
enquanto real.
O pensamento Grego teve seu começo no espanto experimentado
frente ao real e ao Todo de sua emergência, ao Mundo – à magnitude de sua força
e ao seu perigo. Diante desta magnitude apreendida, o homem Grego se viu de
imediato desabrigado, disposto pela angústia e o medo; urgia albergar-se no
interior do seu próprio âmbito de desabrigo. Se considerarmos o dizer de
Sócrates, acerca do motivo impulsionador do seu filosofar, ou se considerarmos
o parecer de Sófocles acerca do caráter espantoso da condição humana, poetado
em sua Antígona, compreendemos que
este espanto, que acometeu o Grego antes que a qualquer outro povo e que lhe
acarretou o sentimento de desabrigo, foi o que orientou o seu existir em vista
da Beleza. Em seu sentido existencial, a Beleza é a harmonia (concórdia de
diferenças) e a placidez (serenidade) do Ser, doadas exclusivamente à sustentação do pensamento frente à
magnitude da força e do perigo do fundo escuro sempre emergente do luminoso real.
Na verdade do seu princípio, a Beleza
experimentada na perspectiva do Grego é a possibilidade originária da
experiência humana da liberdade, tanto frente à condição restritiva do seu
existir junto ao imensurável do real doado pelo Ser, quanto frente aos
conseqüentes limites impostos pela legalidade civil oriunda do intento humano
de organizar sua relação comunitária com o Mundo. – Nestes termos, a Beleza constituiu
o ético no homem Grego. Daí que a tragédia Grega seja a manifestação poética a
mais bela do Mito por ser a mais contundente sustentação do pensamento concorde
ao inefável do Ser.
Assim, pois, quando pensamos em harmonia por respeito à beleza Grega, não
podemos incorrer no erro de pensar uma mera convergência externa de formas bem
traçadas, de palavras bem metrificadas, bem ritmadas, de melodias repousadas
sobre escalas bem articuladas em ritmos precisos. Uma tal harmonia externa já
esta fundada numa harmonia essencial, a qual antecede a toda bela forma,
enquanto sua condição de possibilidade.
Esta harmonia essencial na qual a Beleza repousa em seu fundamento ele
mesmo, faria manifestar o seu caráter próprio, em nossa língua portuguesa, nas
palavras pudor e procedência – com estas palavras estaríamos traduzindo de maneira
muito aproximada duas palavras primordiais da poética e da filosofia Gregas:
Aιδώς [Aidós] Aρετή [Areté], esta última traduzida para o latim
já com uma conotação por demais antropológica pela palavra Virtus (Virtude)[i].
É-nos então necessário perguntar em que sentido podemos pensar o pudor e a
procedência enquanto manifestações do caráter próprio de uma harmonia
essencial, isto é, do fundamento da Beleza. Uma tal perspectiva só se deixa
compreender quando observamos o caráter bipatente que distingue o Mito no
interior da existência e do pensamento Gregos.
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Verdade, o Grego compreendeu sob o signo da palavra ’aλήθεια (alétheia). Esta palavra se faz designar enquanto o Dizer primordial de uma
ocorrência de clareira – esta aqui um fenômeno de descerramento pró-cedido e sustentado no interior de
uma cerração originária. A relação entretida entre clareira e cerração é uma
relação encetada entre o pensamento e o Ser. De modo muito breve, cabe-nos
esclarecer aqui que, do ponto de vista que orienta a nossa compreensão desta
questão (a filosofia de Martin Heidegger), o Ser se determina enquanto uma
doação originária de possibilidade de todo real e do existir humano, portanto,
enquanto condição de possibilidade da emergência daquele e do desdobramento
deste, sempre já em um mundo circunscrito; por sua vez, o pensamento é determinado enquanto a forma
da possibilidade e o âmbito de sentido para a presença deste real por
respeito ao existir humano, forma e âmbito concedidos pelo próprio Ser
enquanto Mundo. Esta forma da possibilidade e este âmbito do real enquanto o
qual se determina o pensamento são o binômio que constitui o fenômeno da
linguagem. O pensamento tem sua origem na linguagem, porque é possibilitado no
interior desta forma de manifestação própria do Ser. Eis porque Heidegger
afirma que a linguagem é a morada do Ser e o homem o pastor do Ser habitante em
sua morada – apenas a partir de uma perspectiva que compreenda o pensamento
constituído na forma do seu próprio meio de proveniência, é possível perceber
de fato e afirmar que ele se estruture enquanto linguagem, porque só assim é
possível destituí-lo da função imprópria de sujeito da linguagem.
Visto isto, podemos compreender melhor o sentido primordial da Verdade
para o Grego: verdade é a apresentação de todo o real – desde o seio de uma
cerração originária – numa clareira, ou seja: num Dizer próprio à sua
manifestação. Só há verdade onde o Ser se doa enquanto irrupção (Φύσις) e Palavra
(λόγος ), sendo esta uma forma e um
âmbito possível para aquela.
Heidegger nos ensina a fazer o
percurso pelo pensamento Grego através da sua perspectiva da verdade e da
ralação primordial desta com o Mito. O filósofo afirma textualmente, em sua
obra Parmênides: “A essência do μΰθος
[mithos] é a mesma da ’aλήθεια (..). Mito é isto que destranca,
descerra, deixa ver, a saber, o que se mostra em tudo por antecipação enquanto
o presente em toda “presença”. Somente onde a essência da palavra se funda na ’aλήθεια, portanto com os Gregos, e só aí;
somente onde a palavra, assim fundada, enquanto lenda primorosa suporta toda
poesia e todo pensamento, portanto com os Gregos, e só aí; somente onde a
poesia e o pensamento fundam a referência primordial com o que é cerrado,
portanto só com os Gregos; só aí se dá isto que o nome grego μΰθος sustenta, o
Mito” (p. 89, edição citada na nota de fim de texto).
Este redobramento essencial do Ser em Palavra, assumido pela existência
Grega, redobramento, donde emerge a verdade (a clareira) como fundamento da
poesia e do pensamento e que manifesta a estes enquanto fundo da relação
essencial do descerramento com a cerração, com o âmbito inexaurível de
possibilidade de toda a verdade, é o que propriamente concede significado à
ocorrência do Mito enquanto fundamento essencial da palavra do Ser. No mesmo
trecho da obra acima citada, Heidegger esclarece que a Noite, e o Deus Urano,
tomado como a luz do dia, são os Mitos mais primitivos da poesia Grega,
precisamente porque estas duas Divindades trazem no seu próprio Ser o sentido
da cerração (Caos) e da clareira (distinção) originárias enquanto princípio
(fundamento) de todo começo. Ambos os Mitos fundam, assim, o Dizer eminente da
condição de possibilidade do Todo, isto é, o Dizer necessariamente prioritário,
porque o Dizer que profere o princípio de emergência de tudo a partir da
essência da cerração e do descerramento. Pois, diz o filósofo, “só o que é dito
deste modo é o que é para ser primordialmente dito. É a lenda propriamente, a
palavra primordial. “Mΰθος é a palavra grega que soa para designar a palavra na
qual se diz o que é para ser dito de antemão”.
Feito este esclarecimento necessário, agora já nos é possível intuir o
lugar essencial que ocupa tanto o pudor quanto a procedência na manifestação da
harmonia essencial na qual a Beleza repousa em seu fundamento. Se a poesia e o
pensamento constituem o fundo da relação essencial com a cerração, e se este
fundo doa a verdade (a clareira) enquanto fundamento para toda palavra
essencial, se é essa relação poético-pensante que dá significação ao que se
nomeia Mito, isto só pode querer significar que a palavra primordial, a palavra
que diz o que é para ser dito antes de tudo o mais, só pode ser um proferimento
do próprio Mistério cerrado no Ser. Mas se a palavra é uma dobra do Ser e, por conseguinte,
o Mito é Ser e palavra, então o Mito é o dar-se (Ser) do Mistério e o Dizer (λόγος ) do Mistério. – Isto dista muito de uma visão ingênua e
supersticiosa do Mito, e dista ainda mais de uma visão depreciativa, que o suponha
apenas como a expressão inculta de um do pensamento especulativo quando ainda
pouco evoluído.
Mas que Mistério constitui o Mito e o que é o seu Dizer do Mistério? O
Mistério que constitui o Mito é o que primordialmente se diz enquanto aquilo
que propriamente ele é. Já o dissemos acima: é a originariamente a Noite, a Luz
celeste, mas é também a Morte, a Justiça, o Pudor, a Verdade, a Terra, o Mar, a
Flora, e ainda a Luta, a Serenidade, a Transformação contínua e o Curso do
Mesmo, o Desejo, a Alegria, a Coragem, a Beleza, o Amor – todas as formas
Divinas do Ser diferenciando-se em si mesmo, as quais o Grego configurou nas
imagens esplêndidas dos seus Deuses; o Dizer do Mito é precisamente o dizer do
Mistério encerrado nestas ocorrências sagradas vindas à palavra. Como Heidegger
ensina, não são a Noite, a Morte e todas as ocorrências míticas interiores à
verdade apenas imagens empregadas no dizer da poesia; antes as imagens, as
alegorias configuradas em toda a arte Grega, ouvidas na sua poética,
visualizadas nas suas danças, detidas em suas esculturas, subjacentes às
determinações práticas de sua arquitetura, regentes da configuração e da
espacialização de seus edifícios, tais imagens são o modo próprio de dizer e de
configurar aquilo que só permite manifestar o seu Ser em imagens, como modo de
resguardar-se a si mesmo nestas imagens.
O Dizer do Mito não é jamais um dizer devassador, porque
ele é um dizer procedente do próprio Mistério – atido à sua procedência seu
proferimento é regido pelo pudor. Na clareira, na verdade primordial, do Mito,
o Ser se apresenta preservado e a Palavra profere pela fala e pelas obras do
pensamento, a sua própria nobreza. Desdobrado neste âmbito eminente de apresentação, o pensamento dá testemunho
de sua alta linhagem. Regido pelo pudor e pela procedência, o pensamento é
harmonia... é o próprio campo cultivado para o repouso da Beleza... é o templo
reconfortante para a Religião... é a livre amplidão para a Liberdade.
[i] Esta nota importa prioritariamente aos estudiosos da
filosofia de Heidegger interessados na problemática concernente à tradução dos
seus conceitos. Ela não é imprescindível para a compreensão do texto acima pelo
leitor leigo desta filosofia, mas talvez o seja para o leitor nela iniciado. No
ensaio Parmênides, no § 5, Heidegger
procura esclarecer o vínculo entretido entre as palavras gregas Aιδώς e Aρετή. A palavra grega Aιδώς se deixa
traduzir na língua alemã pela palavra Scheu,
que em português pode ser bem traduzida por pudor, no sentido preciso de um
temor reverente. Já a palavra Aρετá (ή), o filósofo a traduz com a palavra alemã Entschlossenheit, a qual eu traduzo por procedência, recorrendo o próprio étimo da palavra alemã (ent: des, pro; schliessen: fechar; geschlossen
fechado; Ent-schlossenheit:
de-liberação, pró-cedência). Ao esclarecer o teor semântico da palavra grega,
Heidegger esclarece que Aρετή tem a mesma raiz que a palavra ’αρτύω (ártyo). Esta última, da qual descende a
palavra do latim ars (arte) com a
qual se traduziu a palavra grega τέχνη (tekné),
significa preparar. A palavra
portuguesa procedência, que pretende significar a proveniência e sua forma
conseqüente enquanto conduta própria, se faz compor do prefixo pro, que como
prefixo indica anterioridade e adiantamento, que como advérbio se põe para designar
um favorecimento prévio, e do radical ceder, que significa conceder, permitir,
possibilitar, deixar, cessar, desistir. Por mais que os aspectos significativos
dos radicais da palavra alemã e portuguesa pareçam contrários, um se faz
significar como fechamento e o outro como cessão, ainda assim ambas as palavras
apresentam o mesmo fundamento ontológico. Encontramos nos dicionários a
tradução da palavra alemã que Heidegger optou para traduzir a palavra grega ’aρετή, através das palavras firmeza,
determinação, resolução, deliberação. Todos estes termos empregados, se
destituídos de qualquer carga indicativa de subjetividade e vontade, podem
apenas significar o preparo e, no
sentido propriamente existencial deste, a procedência – o procedimento próprio,
isto é, apropriado ao seu fundamento e por ele mesmo. Preparar quer dizer
facultar, habilitar, firmar, aprontar, pró-ceder. Por sua vez, o estado de resoluto,
determinado, decidido, deliberado é o estado do que se encontra pronto,
preparado – procedido. Procedente é a conduta própria do pensamento quando
apropriado ao seu fundamento, isto, é, afixado à clareira do Ser..Em seu
Diálogo Para a Discussão da Serenidade,
Heidegger propõe: “Dever-se-ia então pensar a palavra “procedência”, como ela é
pensada, por exemplo, em Ser e Tempo:
enquanto o assumido abrir-se próprio
do Dasein [o Ser do homem] para o aberto... (...) enquanto o qual
nós pensamos a livre amplidão” (Zur
Erörterung der Gelassenheit – Aus
einem Feldweggespräch über das Denken, p. 59 seg – in Verlag Günther Neske, Pfullingen, 1959. Sechste Auflag, 1979). A
firmeza é, para Heidegger, a de-liberação, isto é, a concessão de abrimento em
prol da sustentação do aberto (do concessivo). Enquanto pró-cedência ela é o
sentido essencial da nobreza e da generosidade do pensamento como pura e
simples atinência à sua própria linhagem. Em seu ensaio Parmênides, Heidegger usa
juntamente com o substantivo Enschlossenheit
e o adjetivo entschlossen, o adjetivo entschieden, que é traduzido na linguagem corrente do mesmo modo
que o primeiro adjetivo, como firme, resoluto, etc; considerado desde uma
perspectiva ontológica compreende-se que ele se compõe para significar
originariamente o estado de afixado, unido (não podemos esquecer que toda
resolução, decisão, deliberação já é sempre uma conduta de adesão a.. ou, o que
é o mesmo, de sustentação de abrimento para....). Vejamos: scheiden significa partir, separar; ent-scheiden deve poder significar: a-fixar, na medida em que o
prefixo ent está sendo empregado na
significação alemã com a conotação do prefixo latino de e, precisamente, no
sentido em que este se emprega negando o significado do radical. No ensaio em
questão, o filósofo estabelece: “Em tal ’aρετá, pró-cedência, o homem está a-fixado,
em sentido literal, ao Ser do ente, afixado, isto é, não apartado”. (Parmênides, p.111. – in Vittorio Klostermann, Frankfurt am
Main, 1982)..
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Francisca Rutgliano é professora de filosofia doutorada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.